Nos últimos dias de Novembro de 1888, um administrativo alfandegário inglês chamado Edward Knight Larkins começou a enviar consecutivamente por carta a várias autoridades britânicas a sua teoria sobre a identidade do assassino em série Jack, o Estripador, que, nesse Outono do Terror, matara pelo menos cinco mulheres no distrito londrino de Whitechapel. Segundo a bizarra teoria que o autor promoveu obsessivamente, Jack, o Estripador, seriam três portugueses, oriundos da cidade do Porto de onde partiam regularmente navios ingleses de importação de gado bovino português.
Na imaginação do autor, os candidatos a estripadores (ligados de algum modo a esse comércio) viriam com as reses nos navios e assassinariam as mulheres em Whitechapel enquanto as embarcações faziam escala, antes de regressarem a Portugal sem darem nas vistas.
Não é prático em poucas linhas assinalar todas as sinuosidades que perfazem a proposta labiríntica de Larkins, mas resuma-se que a forma finalmente estabelecida na sua correspondência contemplava que os crimes tinham sido perpetrados por três estivadores do Porto, chamados Manuel Cruz Xavier, João de Sousa Machado e José Lourenço (de que modo chegou a esta conclusão é algo que, não obstante a extensão da sua redacção, o autor não expõe nitidamente). Mas esta hipótese de três estripadores tripeiros era, ainda, delirante o bastante na conjectura da autoria dos crimes: Xavier matara Mary Ann Nichols (31 de Agosto), Machado matara Annie Chapman (8 de Setembro), Lourenço matara Elizabeth Stride (30 de Setembro) e Machado matara Catherine Eddowes (na mesma noite de 30 de Setembro) e Mary Jane Kelly (9 de Novembro).
Acrescente-se que o esboço primitivo da teoria apoiava-se, como tantas outras postas a circular na altura e posteriormente, num único indivíduo como assassino — segundo Larkins, este seria um estivador português, casado e de meia-idade (especulação relacionada com a idade das vítimas), que contraíra uma doença venérea com uma prostituta: «A minha opinião é a de que numa viagem anterior à data de 30 de Agosto, este monstro contraiu uma certa doença no contacto com uma destas desafortunadas e sendo, com toda a probabilidade, um homem casado, exasperou-se de ver-se nessa condição e com o carácter vingativo típico da raça Portuguesa decidiu dar caça a essas mulheres caídas em pecado.»
O mesmo estilo muito próprio de escrever etnologia voltaria a inscrever-se em outra missiva: «O carácter vingativo dos Portugueses é um facto histórico, na verdade, as mutilações que tiveram lugar em Whitechapel são da mesma estirpe terrível das que ficaram registadas na história das Guerras Peninsulares, onde ficou demonstrado que os camponeses Espanhóis e Portugueses, armados com as facas terríveis com que andavam, usando-as à menor provocação, caíam sobre os soldados Franceses e depois de lhes cortarem as gargantas estripavam-nos e submetiam-lhes ferozmente os corpos a outras indignidades à maneira dos selvagens.»
A razão pela qual Larkins desdobrou a hipótese inicial de um único candidato a estripador para a de três candidatos não é totalmente clara (tal como não é evidente se está a propor uma solução baseada numa espécie de pacto macabro combinado pelo trio ou se os crimes são actos independentes entre si inevitavelmente compelidos pela vocação homicida dos portugueses), mas o entusiasmo com que redigiu e remeteu os resultados das suas investigações não multiplicou sentimentos idênticos pelos destinatários, como ficou comprovado pelas perícias feitas na altura: «(…) as teorias de Larkin são insustentáveis. O inquérito rigoroso que fizemos levou-nos a essa conclusão. O homem é um caprichoso impertinente e é inútil continuar a dar-lhe atenção.» E ainda: «(…) o Sr. E. K. Larkins é um intrometido incómodo cujos devaneios sobre os assassinatos de Whitechapel já provocaram problemas desnecessários a este departamento (…) As suas teorias foram investigadas e provou-se que não tinham fundamento, pelo que é uma perda de tempo continuar a lidar com ele sobre este assunto.» Frustrado pela recusa das suas ideias, o autor passou a argumentar a quem lhe prestasse atenção que as autoridades estavam, na verdade, a conspirar para proteger os três estivadores-estripadores.
Dissolvida pela erosão do tempo, a inverosímil teoria de Larkins ajudar-nos-á, talvez, à reconstituição dos mapas mentais de períodos confundidos pela irrupção do Inaudito: algo que defino provisoriamente como aquilo que parte de referências disponíveis à altura, mas que coalesce numa forma sem precedentes, frustrando, assim, o poder interpretativo primitivamente angariado para explicá-lo. No que se liga à prática do homicídio, a teoria de Larkins até reflecte a mesma fenomenologia das suspeitas que perturbaram a população do East End de Londres quando em Dezembro de 1811 duas famílias foram assassinadas em casa de modo rápido e crudelíssimo num evento inaudito que ficou conhecido como os “assassinatos de Ratcliffe Highway” — nessa altura, também se desconfiou de marinheiros portugueses e, pelo menos, cinco foram interrogados sem consequências. O julgamento de John Williams — um irlandês (ou escocês, não se conseguiu apurar) — por esses crimes e o seu suicídio na cela no ano seguinte serviu de inspiração ao intrigante opúsculo semi-satírico e semi-ensaístico Do Assassínio como uma das Belas-Artes (1827) do escritor inglês Thomas de Quincey — texto que, sugiro, poderá ter contribuído para o cultivo da paisagem do possível em que se caldearam os crimes ocorridos em Whitechapel setenta e sete anos depois.