No dia em que nos despedimos de Joaquim Pinto, recordamos alguma da mitologia que rodeia o músico bracarense e os primeiros passos da carreira dos MÃO MORTA.
“O Pinto falou-me em vestir uns calções vermelhos e verdes com o escudo no cu”, referiu Adolfo Luxúria Canibal, numa entrevista ao Blitz, publicada a 12 de Julho de 1988. Na altura, estava-se muito longe de perceber qual seria a longevidade do grupo ou a sua influência na música portuguesa, mas os mais fãs mais atentos percebiam que aquela forte dose de irreverência não era só responsabilidade de Adolfo. O “Pinto” a que fazia referência era, obviamente, Joaquim Pinto, baixista e fundador dos MÃO MORTA.
Para a mitologia do rock luso, ficará para sempre a epifania de Joaquim Pinto, em Berlim, nos anos 80. A história é sobejamente conhecida pelos seguidores da banda. Após uma actuação dos norte-americanos SWANS, na capital alemã, Pinto encontra Harry Crosby, baixista do grupo liderado por Michael Gira, que lhe diz que ele tem cara de baixista. Depois deste momento para “dois destinos que se cruzam na lonjura da distância” , o bracarense regressa à terra natal, compra um baixo e, em Novembro desse ano, forma os MÃO MORTA, inicialmente denominados PVT INDUSTRIAL.
O facto de haver uma onda musical a florescer na cidade, fruto da mítica Fábrica, e com projectos tão efémeros como vanguardistas, naquilo que foi a primeira vaga de grupos nacionais fora dos centros urbanos do Porto e de Lisboa, também não terá sido estranho ao nascimento da banda, mas a fábula berlinesca tem toda outra magia.
Estava-se em 1984, diz a mitologia que se estava no dia 1 de Novembro, embora muito antes do tema homónimo. No ano seguinte, a banda já se estreava no Porto, numa época em que Braga-Porto era uma distância bem maior que hoje e numa altura em que a mítica A1 ainda não estava completa. No entanto, já se bebia café de saco no centro da cidade dos arcebispos. Pouco tempo depois, a formação muda, e o núcleo criativo recentra-se.
Adolfo Luxúria Canibal ganha mais protagonismo, enquanto os músicos crescem enquanto executantes. Adolfo e Miguel Pedro, assim Joaquim Pinto, estão desde a origem. Zé dos Eclipses chega pouco depois, seguindo-se Carlos Fortes. O percurso nos palcos é, como se sabe, irreverente; contribuem muito para a fogueira Gun Club, já em 1987, e a RUT, Rádio Universidade Tejo, elege os MÃO MORTA como “a melhor banda nacional sem registo em vinil” em Fevereiro de 1987.
Por esta altura já tinham ganho o Prémio de Originalidade no III Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous. Alguém no Blitz escreveria que originalidade não era dizer palavrões, mas a actuação foi icónica, ao ponto de hoje ninguém recordar os vencedores do prémio principal, os também bracarenses Rong Wrong. Para o registo, diga-se que o primeiro tema da noite foi «Oub’Lá», tema que, nas palavras de Adolfo, é um elogio à heroína.
Também em 1987 é editada uma maqueta de seis temas, em cassete, intitulada «Mão Morta», com o selo Malucos da Pátria. No ano seguinte, sai o álbum de estreia «Mão Morta», via Ama Romanta, que Miguel Talhinhas, nas páginas do Blitz, afirmava ser “o mais violento abanão na pop nacional”, concluindo que “a Mão Morta vai ainda bater a muita porta”. Ricardo Saló, no Expresso, classificava-os como um “projecto de características únicas” que instituía “o direito à diferença, mas pela força da música consagra-o”. Como está bem de ver, is concertos sucedem-se e, em 1988, a banda “abre” para Nick Cave.
A estrada começa a devorar os MÃO MORTA, agora a braços com os problemas inerentes a uma vida no rock. Um regresso ao Rock Rendez Vous, fica marcado pelo roubo do material do grupo. Na cidade natal, dão concertos cada vez mais polémicos, como quando cortam uma imagem da Nossa Senhora de Fátima com uma motosserra. Em 1990, Rui Miguel Abreu, no extinto jornal A Capital, coloca os MÃO MORTA ao nível dos The Young Gods, para quem “abriram” em Maio desse ano, dizendo que a enchenteno Cinema Alvalade terá sido provocada pelos bracarenses e não pelos suíços.
Quando, em Setembro de 1990, surge «Corações Felpudos», o segundo longa-duração da banda, já o baixo estava nas mãos de António Rafael. Por essa altura, Joaquim Pinto já estava arredado da banda que fundara. Apesar de reconhecido como compositor no grupo, além de baixista e teclista, nunca teve um tema apenas da sua autoria. Apenas teve a graça da epifania em Berlim, mas, sem ela, a música lusa não seria certamente a mesma.
Sem Joaquim Pinto, tragicamente falecido na madrugada desta segunda-feira, 4 de Novembro de 2024, a música nacional ficou mais pobre. E, para os MÃO MORTA, Novembro também passa a ser o mês em que “os paralelos asfixiam a alma”, na “solidão, saudade” por alguém.