Noite amena, propícia à exploração de sonoridades alternativas na sempre vanguardista ZDB – desta vez, oportunidade dada a um nome emergente (e de que maneira – imaginamos que terá sido a última vez que os vemos num contexto tão intimista) da cena experimentalista nova-iorquina, os LEYA, que, ainda que situados nos limites mais aventureiros do LOUD!ável em termos sonoros, não deixam de ter alguma ligações importantes à música de peso mais óbvio, como colaborações com os Liturgy e com Eartheater, por exemplo. Mas já lá vamos, porque antes ainda houve 45 minutos para nos ambientarmos – literalmente – ao que aí vinha, com uma performance bem interessante do irlandês (residente em Lisboa, como facilmente se percebe pelo português surpreendentemente desenvolto com que comunica com o público) Seán Being. Sozinho em palco com uma parafernália de equipamento numa pedaleira, envergando um vestido que parecia uma segunda pele, a postura inicial era a de uma figura quase tão espectral como a música que interpretou nos primeiros momentos do concerto, peças ambientais, recheadas de texturas melancólicas, loops hipnóticos e a sua voz, processada e fantasmagórica. Depois de nos atrair para este mundo etéreo, quase como se estivessemos a assistir a uma nostálgica montagem em sépia de uma imaginária infância de um personagem de um filme, Being pega no baixo e o dinamismo da música altera-se, como se da dream sequence fluíssemos em direcção a uma realidade mais concreta, onde as frases já são mais perceptíveis, onde já ribombam notas, e onde a estrutura dos temas se vai tornando progressivamente mais nítida. Até a interacção com o público se torna mais directa, com o músico a sentar-se mesmo na beira do palco a certa altura. “I’m just thinking my thoughts,“canta ele num desses últimos temas, e sim, a certa altura parecia mesmo que estávamos a ouvir a materialização sonora de alguém a pensar “em voz alta”, um raciocínio musical que se foi solidificando com o avançar da actuação, e criando uma simbiose cada vez mais próxima com um público que estava, diga-se, suavemente rendido à prestação do irlandês.
A última palavra de Being antes de abandonar o palco da ZBD foi para os LEYA, cujo concerto, na previsão dele, iria ser “incrível”. Um futurismo que acertou em cheio no que se passou. Duo composto por harpa e violino, tocados respectivamente por Marilu Donovan e Adam Markiewicz (também dos The Dreebs, PC Worship e Gold Dime), este último que também, crucialmente, canta enquanto toca o seu instrumento. E se essa tarefa já parece em si própria, invulgar e digna de registo, mais ainda se torna quando ouvimos a perturbadora beleza da sua voz contratenor-esca. Evocando imediatamente o lendário Scott Walker, a espaços os temas mais layered de Matt Elliott (que já actuou ele próprio nesta sala algumas vezes), cantando sempre a uma distância considerável do microfone, fechando os olhos é como se um espírito incorpóreo estivesse a invadir as já de si enleantes e labirínticas linhas melódicas que a fracturante dualidade da harpa e do violino vão criando. Se investigarem o catálogo discográfico, há mais na música dos LEYA do que os três componentes (harpa/violino/voz) que construíram esta actuação, mas conforme Markiewicz explicou a uma entusiasmada fã que, perto do final do concerto, lhe tentou explicar que ele é jovem e não está cansado e que por isso podia perfeitamente tocar mais um bocadinho, esta foi uma actuação self-contained, pensada para este formato e para estas características, e de facto a sensação que ficou é que assistimos a uma peça quase contínua, ainda que tenha sido uma colecção de canções, com coerência, fluência, e princípio-meio-e-fim bem definidos. Para além da excelência da interpretação e da qualidade hipnótica extraordinária da música, fica também a simplicidade desarmante, e por vezes hilariante, de Markiewicz na relação com o público – com uma instrumentação e a própria aproximação à música plenos de um neo-classicismo e minimalismo que tantas vezes tem tendência para descair para o pedante, é do mais refrescante que há ter aquele rapaz de t-shirt de banda vestida a dizer-nos “Hell yeah! How the fuck are you doing?” entusiasmadamente no final de um dos temas mais solenes e mais evocativos, por exemplo. Não sabemos se no final do concerto o duo foi fazer a festa pela noite de Lisboa fora como o vocalista/violinista sugeriu a certa altura, enaltecendo a beleza da cidade, mas depois daquilo que nos deram em palco, esperamos que sim – terá sido uma festa bem merecida.
FOTOS: Estefânia Silva