HELLOWEEN

Três décadas após inventarem uma linguagem própria para a dor e a revolta, os KORN subiram finalmente ao lugar de honra. No Restelo, o passado e o presente colidiram com força tectónica — e Lisboa não hesitou em coroá-los.

Estádio do Restelo, Lisboa, 28 de Junho de 2025 — A meio da noite, Jonathan Davis parou alguns segundos, olhou em redor e, com uma mistura de espanto e gratidão, murmurou: “Olhem para vocês… Isto é inacreditável.” E não, não foi só mais uma frase para a plateia — foi a constatação de que, depois de três décadas de carreira, os KORN estavam finalmente no lugar certo, à hora certa, e diante de um público que os recebeu como heróis.

Para muitos dos presentes, esta actuação foi o culminar de uma espera longa, alimentada por álbuns, vídeos, bootlegs e memórias fragmentadas de outras passagens fugazes por palcos portugueses. E agora, finalmente, a banda que moldou o som de uma geração actuava finalmente como cabeça de cartaz do maior festival nacional dedicado à música pesada— onde, de resto, sempre pertenceu.

Desde as primeiras horas da tarde, os sinais estavam lá: uma multidão que se aglomerava cada vez mais cedo em frente ao palco principal, t-shirts antigas com logos gastos, tranças simbólicas, Adidas vintage e um ar de antecipação colectiva, como se todos soubessem que este momento era especial. Porque era. Portugal sempre teve uma relação peculiar com os KORN — nunca a mais mediática, mas sempre intensa, sempre fiel.

A primeira vinda da banda a solo nacional aconteceu apenas em 2000, no Pavilhão Atlântico. Desde então, apesar de presenças esporádicas, o país ficou muitas vezes de fora das grandes rotas dos músicos de Bakersfield. Mas os fãs portugueses mantiveram-se fiéis. E ontem, no Restelo, no segundo dia da primeira edição open air do EVILLIVƎ FESTIVAL fizeram-se ouvir com uma entrega raramente vista num evento desta dimensão. A actuação arrancou com o clássico ritual de «Blind», e desde o primeiro “Are you readyyyyyy?” ficou claro que esta a noite seria marcada por mais do que apenas nostalgia.

O que se seguiu foi uma avalanche de temas clássicos — «Here to Stay», «Got The Life», «Clown», «Did My Time», «Somebody Someone» — que pareciam não só relembrar os momentos altos da banda, mas celebrá-los com uma energia renovada. O som estava nítido, seco, e impiedosamente pesado. O baixo de Raz Diaz soava como uma fundação tectónica sob os riffs abrasivos de Munky e Head. Ray Luzier, como sempre, parecia possuído, a atacar a bateria com uma intensidade quase antinatural.

Jonathan Davis dançava, agitava-se como a alma inquieta que sempre foi. As muito celebradas gaitas de foles em «Shoots And Ladders» voltaram a levantar a questão de como uma banda consegue integrar elementos tão bizarros na sua sonoridade e ainda assim manter a coerência. No entanto, esse é o milagre dos KORN: sempre conseguiram conciliar o grotesco, o melódico, o confessional e o brutal numa só linguagem. Sem recorrerem a pirotecnia nem efeitos cénicos grandiosos, os KORN apostaram numa cenografia centrada num vórtice de luzes mutantes — alternando florestas em chamas, formas líquidas e abstracções industriais — que complementou na perfeição a fisicalidade da música.

«Twisted Transistor» marcou um regresso inesperado ao alinhamento, antes de «A.D.I.D.A.S.» incendiar ainda mais uma multidão que, do relvado às bancadas, cantava tudo sem falhas. No encore, depois de uma primeira despedida apoteótica com «Y’All Want A Single», Davis regressou sozinho ao palco, envolto numa névoa densa, e iniciou «4U», uma das canções mais íntimas e desconfortavelmente belas do catálogo da banda.

O que se seguiu foi um momento quase silencioso, de suspensão colectiva, com o estádio em estado de transe. E depois, como se despertasse do luto, a incontornável «Falling Away From Me» irrompeu pelo PA, com as luzes a explodirem em vermelho e branco e o público a cantar cada palavra como se estivesse a exorcizar os seus próprios demónios.

Já na sequência de «Divine», o derradeiro momento da noite foi, inevitavelmente, «Freak On A Leash». O riff de abertura arrancou gritos viscerais da multidão, e o refrão foi entoado em uníssono, ecoando pelas bancadas e pelos bairros circundantes de Belém. E depois, como que em modo de assinatura irónica, soou a versão lounge da mesma canção, interpretada por Richard Cheese, enquanto serpentinas brancas caíam do topo do palco.

Se há críticas a fazer, talvez seja apenas o tempo: 90 minutos souberam a pouco. Ficaram de fora temas como «Make Me Bad», «Coming Undone», «Alone I Break», «Thoughtless», «Trash», «Faget»… Mas talvez isso seja prova da riqueza de um legado que nunca parou de crescer. Mesmo no auge do declínio do nu-metal, os KORN reinventaram-se, arriscaram, erraram, acertaram — e continuam aqui.

Mais do que relevantes: necessários. Com o ressurgimento global do nu-metal em plena força — impulsionado por nomes mais jovens, como Tallah, Poppy ou Tetrarch, e pelo revivalismo geracional que tem devolvido os anos 2000 ao centro da cultura pop — a presença dos KORN como cabeças de cartaz do EVILLIVƎ FESTIVAL não foi apenas simbólica; foi um acto de justiça.