Trinta anos depois de «Domination», David Vincent e Pete Sandoval regressaram a Lisboa com os seus I AM MORBID para um concerto que não foi apenas uma viagem ao passado — foi, isso sim, uma reafirmação da vitalidade eterna do death metal clássico.
Há datas que marcam mais do que apenas um ponto no calendário. Em plena noite de Domingo, o LAV – Lisboa ao Vivo foi palco de uma celebração tão ruidosa quanto memorável: os I AM MORBID, liderados por David Vincent e Pete “Commando” Sandoval, regressaram à capital portuguesa para assinarem uma homenagem em corpo e alma a «Domination», disco maior da era dourada do death metal. O público, composto por várias gerações de fãs — muitos deles seguramente com memórias da primeira vez que ouviram estes temas em CD, vinil ou cassete — não encheu a sala, mas respondeu com entusiasmo a uma noite que cruzou o peso da história com a fúria do presente.
Os I AM MORBID escolheram Lisboa para uma das datas mais especiais da digressão comemorativa dos trinta anos de «Domination», um dos álbuns mais emblemáticos da era de ouro dos MORBID ANGEL e, por extensão, de toda a história do death metal. O público, heterogéneo em idades, mas homogéneo no entusiasmo, começava a encher a sala com um brilho nos olhos que só se vê quando se sabe que algo verdadeiramente especial está prestes a acontecer.
No entanto, a noite não se fez só dos cabeças de cartaz. Os GODIVA assumiram a responsabilidade de preparar o terreno — e fizeram-no com garra e intensidade. A banda nortenha está na fase final da promoção do seu álbum «Hubris», que marcou o seu regresso aos discos com uma sonoridade densa e moderna, sem esquecer as raízes mais extremas. Apesar da entrega em palco e da evidente competência técnica, o concerto acabou por se revelar excessivamente longo e com alguns momentos de quebra.
Vindos de uma intensa digressão europeia, os GODIVA demonstraram que ainda há arestas a limar para que o impacto ao vivo esteja ao nível do material captado em estúdio. Ainda assim, o seu lugar na noite foi merecido, e a resposta do público, embora morna em certos momentos, foi respeitosa.









Entre bandas, à porta da sala, ouviam-se conversas sobre a última vez que se viu David Vincent ao vivo, viam-se muitas t-shirts dos MORBID ANGEL de diferentes épocas, e até se ensaiaram debates casuais (e algo desnecessários) sobre o lugar que o «Domination» ocupa no cânone do death metal: tudo isto fez parte de uma comunhão que transcendeu o habitual ritual de concertos. Trinta anos passaram desde o lançamento do quarto disco de estúdio dos MORBID ANGEL, e ainda hoje a sua influência é sentida na linguagem do metal extremo.
Canções como «Dominate», «Where The Slime Live», «Dawn Of The Angry» ou «Eyes To See, Ears To Hear» resistem ao tempo, não apenas como clássicos de uma era, mas como composições que ajudaram a moldar o que significa ser extremo, técnico e brutal. Essa herança esteve bem viva em palco, trazida à tona por músicos que a conhecem de dentro para fora. E essa aura de nostalgia, que tem vindo a tornar-se cada vez mais presente neste tipo de eventos, foi impossível de ignorar.
Mas, mais do que uma simples saudade do passado, o que se sentiu foi uma necessidade partilhada de ligação pessoal — com músicas que moldaram identidades, com sons que despertaram inquietações, com letras que abriram mundos internos. Como tem sido discutido por cientistas e críticos culturais, a nostalgia musical não é apenas uma questão de gosto: é, isso sim, um mecanismo neurológico que nos oferece conforto, reconhecimento e até prazer. E o death metal, com a sua intensidade emocional e física, presta-se particularmente bem a este tipo de revisitação afectiva.
Não faltaram, claro, os cépticos. Aqueles que levantam a velha questão da legitimidade: “sem Trey Azagthoth, pode alguma vez haver MORBID ANGEL?” A resposta é simples — esta não é a banda de outrora. Mas também não pretende sê-lo. Os I AM MORBID não escondem, nem nunca esconderam, a sua condição: são um veículo para manter vivo um repertório que marcou o metal extremo para sempre, tocado por alguns dos músicos que o criaram. E esta noite, como tantas outras nesta digressão, serviu para provar que o termo “tributo” pode ter múltiplas camadas de verdade. Quando o tributo é feito por quem ajudou a erguer os alicerces, transforma-se em reivindicação.
Foi com essa energia que o concerto arrancou — e de que maneira. Depois da introdução com «Kings Of Metal», dos MANOWAR, a ecoar no PA como um grito de guerra antecipado, os músicos explodiram com «Dominate», tema-título de «Domination», deixando logo claro que não vinham apenas cumprir calendário. O som estava coeso, os músicos focados, e o público imediatamente conquistado. A transição para «Where The Slime Live» foi recebida com o primeiro grande clímax colectivo da noite — e dali para a frente foi sempre a subir.








David Vincent, imponente como sempre, manteve uma postura entre o sacerdotal e o guerreiro. Com a sua voz cavernosa e presença magnética, conduziu a multidão por um alinhamento que foi uma verdadeira viagem aos confins da brutalidade técnica e da atmosfera sombria. Já Pete Sandoval, fiel ao seu epíteto de “Commando”, ofereceu uma aula de precisão e resistência: a cada blastbeat, a cada viragem de tempo, a sua bateria parecia uma extensão natural do caos controlado que define o género.
O duo de guitarristas — Bill Hudson e Richie Brown — foi mais do que mero suporte. Entre harmonias clássicas e solos demolidores, a dupla mostrou respeito pelo legado sem cair na reprodução mecânica. Hudson, em particular, mostrou uma aptidão especial para fazer soar cada frase como se fosse a primeira vez que estava a ser tocada, enquanto Brown manteve a espinha dorsal com rigor e energia.
A figura central da noite foi, inevitavelmente, Vincent — presença imponente, voz inconfundível, carisma intacto — ainda que mais cheesy que nunca. No entanto, não menos crucial foi o regresso de Pete Sandoval a Portugal, cujo ataque implacável na bateria continua a ser um dos pilares do death metal old school. O peso simbólico dos dois estarem juntos em palco não se perdeu no público. Afinal, esta dupla foi o motor de alguns dos álbuns mais importantes da década de 90 no género.
Apesar das inevitáveis questões sobre a legitimidade da banda — há quem veja os I AM MORBID como uma espécie de grupo de tributo a si próprios, sobretudo na ausência de Trey Azagthoth, figura essencial no som e na composição dos MORBID ANGEL — a verdade é que quaisquer dúvidas que restassem não demoraram muito a dissipar-se por completo. Quando «Where the Slime Live» explodiu pelas colunas do LAV, o público não hesitou: braços erguidos, palavras cantadas em uníssono, mosh em constante rotação. Nesse momento, o que poderia ter sido um exercício de nostalgia tornou-se numa celebração fervorosa daquilo que o death metal tem de mais directo e poderoso.
O alinhamento foi, como se esperava, generoso e equilibrado: se «Dominate» e «Eyes To See, Ears To Hear» cumpriram a promessa de revisitar o álbum celebrado, houve também espaço para outros momentos marcantes da discografia dos MORBID ANGEL. «Immortal Rites», «Maze of Torment», «Chapel of Ghouls» e «God of Emptiness» foram recebidas como verdadeiros hinos por um público que parecia não querer que a noite acabasse. Houve ainda lugar para «Fall From Grace», «Blessed Are the Sick» e «Rapture», numa linha temporal bem desenhada que percorreu várias fases da banda-mãe com coesão e intensidade.
O encore trouxe dois dos momentos mais intensos da noite: «God Of Emptiness», lenta e arrastada como um ritual, e «World Of Shit (The Promised Land), num final que deixou a plateia a arder em aplausos. Ninguém parecia interessado em discutir genealogias ou quem tem direito ao nome — o que contou foi a entrega, a execução e a ligação entre banda e público. No final, o que ficou foi a sensação de que o death metal clássico, quando executado com paixão e mestria, continua a ser uma força de mobilização.
Resultado, os I AM MORBID mostraram que é possível revisitar o passado sem lhe retirar o peso, que é possível honrar um legado sem se tornar refém dele. E que, acima de tudo, é possível transformar a nostalgia em algo activo, vibrante, comunitário. Isso diz-nos tudo o que precisamos de saber sobre a longevidade desta música e a força dos que a transportam.





