Finais de Fevereiro, encontro marcado em Guimarães. 3/4 dos HOLOCAUSTO CANIBAL aguardam para revelar algo já esperado. Passaram vários meses em que, alguns dos elementos do grupo, iam dissertando ocasionalmente sobre um novo lançamento. Percebia-se o entusiasmo. O estúdio fica perto do ponto de encontro e, finalmente, começará a cair o pano. “É um disco semi conceptual, daí a matança do porco ao início”. Quem o diz é António C., o guitarrista do grupo, de longe o mais entusiasmado com o novo trabalho. Quando em 1998, os músicos da Invicta se estrearam com «Opus I», primeira e única maqueta, António estava longe de escutar heavy metal, muito menos de conhecer os HOLOCAUSTO CANIBAL ou sequer de imaginar um dia integrar o grupo. Mais de uma década sobre a sua entrada na banda, vai orientando e explicando temas, aprofundando como tudo aconteceu.
Verdade seja dita, o arranque do álbum já não surpreende – convenhamos, estamos a falar de um grupo que outrora se inspirou nos corpos expostos no Museu de Medicina Legal do Porto e que tem em «Violada Pela Motoserra» um dos seus temas obrigatórios. O plano sonoro facilmente transporta para a matança do porco, focando-se no zénite da mesma. O “disco semi conceptual”, na expressão do agora único guitarrista, resulta apenas do facto de alguns dos temas se inspirarem nesse ritual tão português. «Apresto Executório», «Aniquilação Suídea» e «Ávida Tragação» são as malhas que compõem a «Ode Porcina». Daqui, partimos para outros conceitos, influenciados pelo folclore luso, que também tem o seu lado grotesco. É uma espécie de recensão musical de um museu das atrocidades zoológicas, com cariz lusitano, a que não falta, obviamente a «Ode Taurina», em dois andamentos.
Sonicamente o disco é, de longe, o mais elaborado do grupo. Existem nele pormenores de bateria que antes não se percebiam, apesar de Diogo P. estar sentado atrás do kit desde 2006, e definitivamente a partir de 2009. Sente-se essa força logo em «Ad Bizarre Morem», tema de abertura que vem coalescido com os guinchos do suíno, e suportado por um baixo pulsante. «Êxodo Mortuoso», o segundo tema, traz um solo de perfil clássico, a cargo de Bob Vigna, dos IMMOLATION. Este é um de dois convidados presentes no disco. O outro é Eduardo Fernandes, anterior guitarrista do grupo e que intervêm nas linhas vocais de «Sinaxe do Sepulcro Tafófobo», como que recordando ter sido vocalista dos DECREPIDEMIC, banda inspirada nos HOLOCAUSTO CANIBAL. De resto, a entrada de Orca para a voz, a aquisição mais recente, sente-se plenamente no álbum, sendo, talvez, a primeira vez em que as vocalizações são perceptíveis, como fica patente em «Congregação Da Flama Felídea».
Uma coisa é certa – há, neste novo trabalho, uns HOLOCAUSTO CANIBAL que ainda não se tinham escutado. O sexto longa-duração do grupo tem edição agendada para o dia 27 de Maio, através da Selfmadegod Records e Larvae Records para todo o mundo, mas com edição no Brasil da Xaninho Discos. “Uma coisa boa neste disco, apesar de ter dado trabalho ao João, foi gravar em estúdios diferentes”, refere António C. “Vais levando com a perspectiva de um lado, com a de outro. A bateria foi gravada no Rec’N’Roll, com um mês de preparação, com o mínimo de corta e cose da parte do João e com alguns inputs do Luís Barros”, esclarece. “As cordas foram gravadas aqui e a voz foi gravada no estúdio do João, também em Guimarães, com alguns takes pelo meio”. O “aqui” são os 808 Studios, onde escutámos o disco, e o “estúdio do João”, é o Estúdio 55. João Ribeiro fez a mistura e trabalho como produtor, juntamente com a própria banda, enquanto a masterização ficou a cargo de Brad Boatright, nos Audiosiege Studios, no Oregon, Estados Unidos.
Boatright é um dos engenheiros de som mais requisitados da música extrema contemporânea e a lista de bandas com quem já trabalhou é imensa, sendo que nela constam nomes tão dispares como A STORM OF LIGHT, ALL PIGS MUST DIE, BLACK TUSK, CONJURER, GATECREEPER, INCANTATION, IRON REAGAN ou MONOLORD. “Desta vez tivemos montes de tempo para escolher quem ia tratar da masterização”, afirma António. “Na verdade, através dos HC ou de outras bandas, já tínhamos contacto com todos aqueles com quem queríamos trabalhar — e queríamos uma cena diferente”. O baixista Z. Pedro, por seu lado, é da opinião que o grupo teve “a sorte de ir coleccionando contactos de malta” que aprecia. Sobre Brad há, inclusivamente, um pormenor hilariante: “Ele mandou a primeira versão e ficou logo essa. Juntou uma receita de molho picante para fazer em casa”, revela António. A ideia é reforçada depois por Z. Pedro, dizendo que “mesmo nas directivas para a fábrica, mandou também uma receita de molho picante, o que deixou o responsável todo preocupado”.
A história deste disco, que lança o início das celebrações de quarto de século do grupo, começou bem antes. “Fizemos pré-produção do disco em lugar de partir logo para a gravação”, explica Z. Pedro. “Na verdade, algures em 2018, numa altura em que estávamos a preparar um concerto qualquer, foi algo como ‘temos de gravar um disco novo’. De acordo com o músico, “num ensaio, a fazer uma jam, saiu-nos o primeiro riff da «Epicédio Madrigaz», inicialmente chamada «Crueza Fria». Depois, eu tinha alguns riffs em casa e fui levando para os ensaios e trabalhando as coisas com toda a gente, mas também há outras coisas que foram saindo nos ensaios”. “O processo de composição foi rápido”, afirma Orca, com Z. Pedro a estabelecer um timeline que o confirma: “tenho ideia do Diogo ir para os Açores na Páscoa de 2018 e já ir a ouvir o disco todo. Não íamos tocar muito em 2019, mas por acaso fizemos isto num mês em que íamos tocar bastante, no Fuck The Comerce, em Las Vegas, na Caixa…”. A “caixa” é a performance Box Sized Die, criada pelo artista João Onofre. Trata-se de instalação em que o grupo é colocado a tocar dentro de uma caixa hermeticamente fechada, até quase asfixiar. Foi a propósito desse evento que tiveram uma epifania. “Estávamos lá dentro, ninguém ouvia o que estávamos a tocar, porque não levarmos os temas novos?”, diz António. “Começámos a meter os temas novos no alinhamento; dois primeiro, depois três… em Las Vegas já tocámos metade do disco”. Z. Pedro, por seu lado, revela que “inicialmente os working titles tinham quase todos a ver com a viagem a Las Vegas. Um pouco à Seinfeld”. “O João, nem os conhece por outro nome”, brinca o guitarrista. O baixista e único membro fundador do grupo, continua a discorrer sobre o tema, revelando o seu lado caricato: “a organizadora do festival era condutora de limousines, então um dos temas ficou «The Limo Driver». A empregada do bar chamava-se Jessica, então pusemos «Jessica The Bartender» a outro, que agora se chama «Miasmas Onanizantes». Há bandas que colocam ‘tema novo’, depois ‘tema novo’, mas nós não”.
Já em palco, num concerto recente, sentiu-se o bom humor e a positividade com que todos estavam em palco. Há, de facto, um novo espírito na banda e que transparece para o novo trabalho, mais maturo, sem nunca perder a brutalidade do passado. “Quando fomos gravar o disco já o estávamos sempre a tocar ou a ensaiar para os concertos. E quando não tocávamos, íamos ensaiar, algo que nunca fazíamos. Geralmente, tínhamos um concerto e fazíamos três ou quatro ensaios. Se tivéssemos uma data marcada no ano seguinte, só aí é que ensaiávamos. Neste caso, estivemos sempre a ensaiar”, explica António. “Queríamos que o disco fosse construído para ser fácil de replicar ao vivo, para que eu e o Z. pudéssemos estar à frente a fazer vinte mil merdas diferentes, sem estarmos concentrados a tocar uma parte. E também para dar liberdade ao Orca entre temas. Foi tudo pensado para ser tocado ao vivo. O objectivo foi a experiência de todos estes anos em que nos víamos à rasca para construir setlists para certos públicos. Incluir temas mais desviados do público para o qual estamos a tocar, acaba por quebrar o set. Antes de sentirmos no público, estamos a sentir em nós próprios ao tocar. A ideia foi fazer um disco para tocar ao vivo. Não é por ser novo, mas sim porque resulta. Vais ver o setlist do último concerto e tocámos seis temas antigos. Faz todo o sentido”.
Para Z. Pedro, “por vezes havia um certo sortido de death metal nos discos anteriores. Não quero dizer que um era mais brutal death, ou outro grind, era no mesmo disco misturávamos estilos. Este tem uma identidade muito mais homogénea”. António conclui mesmo que “neste disco não houve pretensões de fazer isto, ou aquilo, soar a este ou àquele. Não sei se este disco é bom ou mau, mas somos nós. É exactamente o que estas quatro pessoas fazem ao vivo. É fluído, quase nem precisas de olhar para o alinhamento, pois já sabes o que vem a seguir. Este disco somos nós”. De facto, o novo álbum surpreende pela positiva e percebe-se o empenho na sua gravação e preparação, não descuidando muitos pormenores técnicos. Em suma, é um trabalho que, usando o bom humor que transpira da banda, pode levar a afirmar que “os Holocausto Canibal estão finalmente a fazer música”.