Foi com muito gosto que percebemos, ao perscrutar o curto horizonte do sempre acolhedor RCA Club, que muitos dos presentes não se deviam lembrar da primeira vez que os WORMROT nos visitaram, nesse já estranhamente longínquo ano de 2011, simplesmente porque não tinham idade para isso. Muita juventude para um concerto que percorre estilos que nunca estiveram, e provavelmente nunca vão estar, “na moda”, uma renovação de público tranquila e natural, já que por entre a malta que há doze anos ainda devia prestar mais atenção aos trabalhos de casa da primária do que ao grind, também se topavam muitos “velhotes” com muitos anos de castanhada. Uma saudável convivência geracional cuja boa onda foi notória durante a prestação das três bandas, ainda que, como de costume, o preenchimento da sala tenha sido um processo longo e progressivo, com as duas propostas nacionais a nunca terem o volume de audiência que merecem. Seja como for, moshpits e circle pits, stagedive, muita animação e movimento do princípio ao fim, como se quer – e nem sequer estávamos perante intérpretes daquele grind mais “festivo”. Não que tenhamos nada contra essa vertente, mas também é bom receber malta do dark side desta equação, centrados no protesto, na resistência e na violência, sem uma única bola de praia insuflável à vista.
Enfim, verdade seja dita, 66% dos próprios WORMROT também não se lembram desses espectáculos de 2011 em Benavente e no Porto. Do trio que nos visitou na altura, só permanece, sempre estoico, o guitarrista fundador Rasyid. É ele a trave mestra do trio de Singapura, de onde brota aquele sonzaço estrondoso que dá a sensação de ser para aí quatro guitarras e dois baixos a tocar ao mesmo tempo por vezes, enquanto saca micro-riffs gigantes sempre com uma postura de quem está sentado na esplanada a pensar no jogo de ontem com um sorriso nos lábios. Dos “suplentes”, a transição de Fitri para Vijesh na bateria foi pacífica, e sem desfazer no seu antecessor, até nos arriscamos a dizer que foi vantajosa — o actual dono do kit, que já lá está sentado desde 2015, é um autêntico polvo, capaz de sacar grandes cavalgadas que conjugam velocidade alucinante com poder ribombante, sempre com fills surpreendentes e detalhes de deixar o queixo caído. Já é essencial para o som da banda, e dificilmente teriam conseguido arrancar um portento como foi o último álbum, «Hiss», sem os seus talentos, que amplamente confirmou com a prestação de ontem à noite.
Não, o principal ponto de contenção estaria precisamente na voz. Mesmo nunca sendo propriamente um posto decisivo para o género em questão, a verdade é que o também fundador Arif Shaimi, que ainda gravou o «Hiss» mas saiu logo de seguida, sempre deixou vincada uma personalidade importante. O seu substituto temporário, o argentino Gabriel Dubko (dos Implore), é um intérprete excelente do estilo, tem postura e experiência de palco, mas mesmo não tendo sido por ele que houve alguma coisa para lamentar durante a prestação da banda, a verdade é que, se quisermos ser picuinhas, a diferença é notória. Seria sempre, já que os WORMROT nunca tiveram outra voz senão a de Arif, mas o “Gabbo” não tem tanto daquele registo mais frenético e mais ágil que ouvimos originalmente nestes temas, parecendo mais apropriado a um som mais encorpado, mais cadenciado, como aliás demonstrou nos temas mais “pesadões” que foram tocados, onde estava nitidamente mais à vontade. Ainda assim, é como dissemos — são pequenos detalhes que em nada perturbaram a excelência da entrega de brutalidade que foi feita.
Centrados no «Hiss», como é natural, sacando de uma ou outra descarga semi-obrigatória do antigamente aqui e ali como «Sledgehammer» (do ultra-clássico «Abuse» de estreia) ou «A Dead Issue» (do «Dirge», que nos apresentavam aquando da sua última visita), varreram o RCA sem necessidade de grandes gimmicks ou espalhafato. Tirando um stagedive celebratório perto do final do “Gabbo“, é banda para ficar sossegada no seu posto enquanto toca e deixar a música falar por si, e foi o poder imenso dessa música que gerou caos constante e sempre divertido à frente do palco, com o público a responder de forma intensa ao que se ouvia. Até quando se enganaram na introdução de «Glass Shards» (“we’re human!“), a coisa foi ultrapassada com descontracção. Na conclusão, muitos elogios para este público ainda assim numeroso e super dedicado de segunda-feira à noite e agradecimentos por terem aparecido.
Um agradecimento que, estamos certos, os WORMROT também quereriam estender às duas bandas nacionais que os precederam, já que foi também devido às suas performances que a máquina humana já estava tão bem oleada aquando do concerto do trio asiático. Se não tinham já excelente imagem da cena portuguesa, certamente terão ficado impressionados com a intensidade posta em prática pelos VERME e pelos MANFERIOR. Os primeiros deram um saltinho do outro lado do Tejo, desde Almada, e escavacaram tudo com uma crustalhada das antigas, recheada de apontamentos lancinantes a remeter para o black metal (até o guitarrista Diogo Santana tinha uma shirtzinha dos Morte Incandescente como que a piscar o olho) e de frequentes abrandamentos à laia de um grind’n’roll que parecia evocar o espírito do «Wolverine Blues» bem patente na longsleeve do igualmente bem trajado vocalista Mário. Recorde-se que isto é gente que tem temas chamados «Satanás, Pvtas e Speed», por exemplo, e foi precisamente esse tipo de espancamento infernal que proporcionaram. Não é para todos o sacudir da letargia inicial com que o público se apresentava, mas para o meio do seu concerto já tinham um apreciável moshpitzinho em movimento. Já os MANFERIOR gastaram um bocadinho mais de gasóleo para cá chegar de Leiria, e bem valeu a pena a viagem. O seu impacto é instantâneo, o ataque é incessante ao ponto de podermos atirar a tag powerviolence para a descrição do seu som. De uma crueza impiedosa, mostraram logo ao que vinham com um trio de abertura do calibre de «Scavengers» / «Unsilent» / «Seeking Death», e criaram constantemente uma parede de som inevitável que até de dentro da casa de banho do recinto se sentia a estremecer as paredes. Como é natural, o público não se fez rogado, e a troca de energias deu-se com a saudável violência que se deseja.
Grandes concertos, curtos e grossos — recorde-se aquele famoso meme, “ten minutes late to grindcore show – missed first two bands” –, pelas onze da noite já estava tudo na rua, mas todos imensamente saciados pela porradaria valente que se viveu no RCA numa insuspeita segunda-feira à noite.
FOTOS: Estefânia Silva