Qualquer nihilista de trazer por casa sabe que, pela voz de Zaratustra, o velho Frederico, se referiu à humanidade como a transição entre os símios e a transcendência, o Übermensch. Tudo isto redundou numa valente confusão a meio do século passado e o conceito de “super humanos” tem andado pelas ruas da amargura. Os dois últimos anos e a inenarrável gestão da crise pandémica (seja por autoridades governamentais, comunidade científica ou organizações mundiais de saúde), aliada às redes sociais e ao sacrossanto direito à imbecilidade e ao “fiz a minha própria pesquisa“, aproximam-nos mais da macacada. Ora, seguindo a voz de Zaratustra, se Deus está morto e a humanidade cada vez mais distante da ascese, em que ficamos? Nem sequer macacos, mas na inferioridade humana. Seremos MANFERIOR. Essa proposta, ao fim de uns valentes meses sem assistir a qualquer concerto, levou-nos à Alternadora, espaço “ocupado” em Setúbal e sobre o qual não vamos adiantar muitos detalhes para evitar a exposição mediática e contribuir para visitas da móina. Afinal, se Deus está morto, não vá o Diabo tecê-las…
Por todas as razões e mais algumas, os primeiros minutos da actuação dos MANFERIOR soaram como se estivéssemos a assistir a um concerto dos NAILS, de tal ordem era a saudade de chungaria. O powerviolence da banda de Leiria agitou e aqueceu o coração crust de quem ali esteve e, na execução técnica, a banda esteve em bom nível, comandada pela coerência das baterias de Pedro Neves. Sonicamente, a guitarra de Marco Gomes furava, mas sem arcaboiço, sem cojones. Um cabeço Carlsbro GLX, a passar através de uma Randall (uma 412, Diavlo ou RG), ofereciam um carácter thrasher old school, ainda mais pelo facto de o músico abdicar de ter pedais. Todavia a Epiphone soou algo pífia e mutilou um pouco o poder com que a banda nos agredia, ainda que a agressividade fosse considerável. Não há volta a dar e, na verdade, para muitos nem sequer é relevante, mas pode ser determinante. Aliás, é muitas vezes determinante na experiência sensorial, como ficava evidente quando o baixista Rui Santos, com um rig Ashdown/Ampeg, abria as goelas ao seu Yamaha BB (um algo raro 415), redimensionando o som da banda. Naturalmente, o grosso do set foi dedicado ao trabalho editado em 2019, «Birth As Punishment». Há muitas referências óbvias, cuja importância, nestas coisas, também é apenas relativa. Ainda assim, a podridão do som da banda tende mais para o crust que para o sludge e o groove dos NAILBOMB paira como um miasma de voodoo sobre os MANFERIOR. De qualquer forma, esta constatação nem é particularmente difícil de fazer, basta passarem pelo Bandcamp do projecto e será, até, bastante evidente.
Se os músicos nacionais agitaram as águas do Sado, os GUMMO foram capazes de provocar um maremoto, abrindo um entusiástico moshpit à frente do palco, ainda que a plateia não ultrapassasse as 40 pessoas. Não se pode ter tudo. E se há um certo encanto elitista em assistir a estes concertos que são o verdadeiro underground do submundo das sonoridades extremas, depois acabamos por ficar com o romantismo algo amolgado, por considerar que, no final de contas, muito mais gente devia ter assistido a uma descarga deste calibre. Os franceses vieram mostrar o recente «A Fresh Breath On The Neck» e partiram tudo. Desde logo, o disco possui uma sonoridade algo artificial, digitalizada, que ao vivo foi absolutamente redimensionada e esteve monstruosa, catapultada pelas cerebrais prestações dos únicos instrumentistas: o baterista Mathieu, um autêntico martelo de guerra pneumático nos blasts, tão maquinal quanto orgânico, e o guitarrista Antoine. Este surgiu a empunhar uma ameaçadora Ibanez Prestige RG de 8 cordas, que era dividida para um EVH 5150 III de 50 watts e para o amp de baixo. Um switch A/B alternava o amp ou somava-os (como sucedeu na maioria da actuação), com um MXR M-108S nas funções de equalizador. Apesar das oito cordas, a guitarra nunca soou djent, mas “entombica”. Abro aqui um parênteses. Há um par de anos que o excelso Simão Santos [dos MARTELO NEGRO e NAMEK], me diz que nunca necessitou de um BOSS HM-2 para ter o som sueco e que sempre recorreu a um clone de trazer por casa, o Behringer HM300. Confesso que nunca tinha levado a sério as afirmações desse mafarrico, até ver, no final do concerto, que era esse o pedal que o guitarrista francês tinha no chão, à sua frente. Fico a dever-te um copo, amigo Simão. “Tenho outros pedais, mas para andar em tour, prefiro estragar estes mais baratos», confessou-nos Antoine, no final de um concerto em que o vocalista Théo comandou o trio de Lille durante uns ferozes 40 minutos, com vários pedidos de encore, de um público rendido a descargas dignas de PIG DESTROYER ou NASUM. Estavam ainda no cartaz os POLLUTED EXISTENCE que acabaram por cancelar a sua actuação, devido a infecção COVID-19. Dentro do espaço ninguém usou máscara. Falamos daqui a 15 dias…