Sem telemóveis e sem spoilers — a passagem da nova digressão dos GHOST pela MEO Arena, em Lisboa, foi um ritual selado pelo mistério.

Quando uma banda proíbe o uso de telemóveis, relega fotógrafos para um fosso a meio do espaço ocupado na plateia da MEO Arena e convida o público a entrar de mãos vazias e olhos bem abertos, está a fazer mais do que manter o suspense — está a declarar guerra à previsibilidade. Foi assim que os GHOST subiram a palco em Lisboa, num regresso envolto em secretismo absoluto. O pano caiu , mas todos os dispositivos electrónicos foram encerrados em bolsas invioláveis. O espectáculo aconteceu, mas permanece guardado numa espécie de cofre simbólico, acessível apenas aos que o testemunharam. Para os restantes, resta a promessa — e, neste caso, é tudo menos vazia.

Porque, contornando os becos estreitos do que pode ou não ser um spoiler, há uma certeza absoluta: os GHOST voltaram a reinventar o conceito de espectáculo em arena para uma nova geração. Se nos anos 80 os DEF LEPPARD colocaram o palco no centro da sala, nos 90 os METALLICA criaram uma estrutura móvel com os fãs no núcleo, e nos 2000 os RAMMSTEIN incendiaram o mundo com pirotecnia quase descontrolada; agora, em pleno século XXI, os GHOST fazem o seu próprio milagre — e ninguém consegue explicá-lo sem estragar a surpresa. É preciso estar lá. Ver, ouvir e, sobretudo, sentir. Mas a isso, já lá vamos. Ao detalhe.

Desde o início da carreira que a banda sueca liderada por Tobias Forge alia música pesada a uma estética profundamente ritualista. Mas nunca o fizeram com a sofisticação e confiança que agora demonstram. A Skeletour 2025 é um organismo vivo, milimetricamente coreografado, em que a grandiosidade da encenação serve a música — e não o contrário. O palco multiplica-se em várias plataformas, níveis e corredores, criando uma geografia visual onde cada elemento está em permanente movimento. Tudo foi reinventado: os trajes, as máscaras, os jogos de luz, os efeitos visuais, o alinhamento e até o tom da habitual comunicação com o público. Nada ficou intocado.

Aquilo que antes era um concerto com uma forte componente cénica tornou-se agora uma peça de teatro rock em larga escala, com ressonâncias que vão da ópera barroca à missa negra, passando por um certo humor blasfemo muito próprio do Sr. Forge. E é precisamente este carisma polimórfico do vocalista e mentor daos GHOST que continua a servir de fio condutor a todo o espectáculo. Forge, como é hábito, surge com uma nova persona — cujo nome, traje e simbologia continuam por aprofundar. Mas a sua presença é inconfundível: firme, teatral, irreverente e controladora, como um maestro que rege não apenas a música, mas também os olhares, as reacções e os silêncios.

Nesta noite de terça-feira (“Amanhã é dia de escola”, disse o mestre de cerimónias a dada altura), tudo começou com uma atmosfera quase litúrgica. As colunas da arena libertaram, em surdina, os sons celestiais de «Klara stjärnor», seguidos pela penitência vocal de «Miserere Mei». Sem qualquer imagem a distrair, sem ecrãs acesos na plateia, o silêncio cúmplice dos presentes era quase palpável. Quem o tinha, olhava para o relógio. Um murmúrio sagrado, expectante, antes da tempestade. E quando esta chegou, fê-lo com um impacto que esmagou qualquer dúvida ou hesitação.

A entrada dos GHOST em palco foi tudo menos discreta. «Peacefield», o mais recente single do novo «Skeletá», abriu caminho ao crescendo. Seguiu-se «Lachryma», funcionando como uma transição cerimonial para a verdadeira investida. A partir de «Spirit», o concerto ganhou corpo — e alma. O clássico «From The Pinnacle To The Pit» trouxe os graves abissais que agitaram o público, logo seguida de «Call Me Little Sunshine». «The Future Is A Foreign Land» serviu de antecâmara para a sequência «Devil Church» / «Cirice» / «Darkness At the Heart of My Love», que mergulhou o público numa espiral que oscilou entre a devoção e o delírio.

Foi, no entanto, com «Satanized» que o concerto dos GHOST mudou de alguma forma. A partir daí, tudo se transformou. Luzes, cenário, guarda-roupa e disposição em palco assumiram nova forma, como se a primeira parte tivesse sido apenas um prólogo — uma preparação ritualista para a verdadeira cerimónia. A velhinha «Ritual» foi precisamente isso: um rito colectivo, onde cada palavra era entoada como uma oração profana. «Umbra» serviu de interlúdio hipnótico, preparando o terreno para a explosão de «Year Zero», com o seu coro satânico em uníssono a fazer estremecer as fundações da sala.

«He Is» trouxe um raro instante de contemplação, um quase hino gospel em tons de heresia, que deu lugar ao rock desavergonhado de «Rats» e à ironia psicadélica de «Kiss The Go-Goat». Por esta altura, é impossível não aplaudir a escolha de repertório. Ao contrário do que seria esperado numa digressão centrada num disco recente, a banda opta por uma abordagem mais abrangente e surpreendente: revisita temas antigos, resgata faixas menos óbvias, e constrói uma narrativa que atravessa diferentes fases da carreira sem nunca perder o fio condutor.

O novo álbum está lá — como não poderia deixar de estar —, mas não domina. Está integrado, não imposto. E isso é revelador da maturidade de uma banda que já não precisa de promover, apenas de mostrar. Talvez por isso, «Mummy Dust» transformou-se num dos pontos altos da noite, com os efeitos visuais a atingirem o seu auge, e «Monstrance Clock» encerrou o corpo principal do concerto como se se tratasse de uma missa negra partilhada por milhares. Mas a noite ainda não tinha acabado. O encore foi recebido com aplausos que mais pareciam súplicas — afinal, ainda faltava tocar “aquela”. A banda regressou para um ataque triplo que funcionou como epílogo e celebração.

«Mary On A Cross» foi entoada em coro, como uma espécie de clássico secular se o TikTok fosse uma igreja a sério (será que é?). «Dance Macabre» pôs toda a arena a dançar em modo possessed disco, e «Square Hammer» fechou com chave de ouro: teatral, contagiante, triunfal. Dois pontos a reter: uma das grandes mudanças nesta nova fase dos GHOST é a ascensão dos Nameless Ghouls ao estatuto de protagonistas. Não é de agora, mas deixaram de ser sombras ou cúmplices silenciosos do Papa. São sete, movimentam-se com energia contagiante e conquistam palco e atenção com naturalidade.

Os novos figurinos, revestidos de detalhes que cintilam sob os focos, conferem-lhes um ar quase cerimonial, como cavaleiros de uma ordem mística em plena missão. Tocam, dançam, trocam de lugar, sobem e descem de estruturas com uma coreografia tão precisa quanto orgânica. Aliás, o dinamismo colectivo é tal que o palco, por maior que seja, parece pequeno para tanto movimento. Ainda assim, há sempre espaço para tudo — e todos. A harmonia entre Forge e os seus Ghouls é visível, palpável. Há cumplicidade, há teatralidade e, acima de tudo, há coesão. Nada está fora de sítio.

Fruto disso, no final do concerto, o que os GHOST ofereceram foi mais que música. Foi um pacto silencioso, uma experiência iniciática, uma celebração onde só entra quem abdica, por momentos, da partilha constante e do registo digital (e é provável que até tenha sido mais fácil depois do apagão de 28 de Abril de 2025). Esta é a oportunidade rara de viver algo efémero, exclusivo e intocável. Uma cerimónia que se celebra ao vivo — e só ao vivo. Com a recusa da lógica de consumo instantâneo, os GHOST criam algo paradoxalmente mais poderoso e memorável. Mostram que, em tempos de excesso de visibilidade, o segredo ainda pode ser o mais luxuoso dos luxos.