Convenhamos, não é difícil traçar o percurso de uma banda como os GAEREA. Juntaram-se como tantos outros grupos de músicos, cresceram na cabeça de um artista talentoso e têm vindo a ganhar destaque em ponto grande. São uma excepção à regra, num mercado saturado em que a música, a arte e, porque não?, o entretenimento, são cada vez mais vistos como um luxo. Desde os primeiros passos mostraram intenção, com o lançamento estrondoso de um EP de estreia poucos meses depois de se terem dado a conhecer. Aqui as coisas tornam-se nebulosas, não se sabe bem há quanto tempo andavam a germinar na cabeça do criador, mas a verdade é que já surgiram em cena formados, a todos os níveis, do conceito visual à música, com essa primeira edição através da pequena, mas suficientemente influente, Everlasting Spew, a dar que falar. O disco homónimo, talvez até por ter vindo de fora para dentro, provocou falatório – não só cá no burgo, mas também por essa Europa fora. E mais: os envolvidos optaram por permanecer anónimos, escondidos por trás de capuzes negros, adornados com um símbolo que remete para o ocultismo. Um visual bem pensado, condizente com a música, numa jogada de mestre nesta vidinha em que toda a gente quer saber tudo sobre toda a gente.
Isso valeu-lhes a atenção extra de que precisavam. Lançaram o primeiro álbum, intitulado «Unsettling Whispers», pela Transcending Obscurity, o que já foi um considerável upgrade, e daí à assinatura de um contrato com a Season Of Mist, que é só uma das MAIORES editoras de música extrema da actualidade, foi um passo. Pese ou não o factor estético, uma estrutura destas não teria apostado os seus euros se não tivesse percebido que tinha nas mãos um projecto com cabeça, tronco e membros, determinado a trabalhar no duro. E é precisamente isso que têm feito. Desde então não mais pararam, nem olharam para trás. E aqui temos mesmo de dar-lhes todo o mérito, agarram-se ao “sonho” e seguiram caminho, mesmo com uma pandemia pelo meio e o impasse que foi o período de lockdown. Hoje, com mais dois álbuns muito elogiados na bagagem – o «Limbo», de 2020, e o mais recente «Mirage», de 2022 –, todos sabem onde chegou a escalada desta banda que nasceu por cá, mas estendeu tentáculos internacionalmente. Antes que suba ainda mais, ontem à noite fez-se um ponto de situação em jeito de balanço.
No último dia de Março de 2023, temos pela frente uns GAEREA acabadinhos de fazer uma tour castigante, mas compensatória, pelos Estados Unidos. Uma banda em topo de forma, pronta a materializar um muito aguardado regresso a casa. Uma banda que toca muito mais lá fora que cá dentro, porque cá dentro não chega. Mas já lá vamos, porque antes ainda subiram ao palco os OKKULTIST, que traziam na bagagem o novo «O.M.E.N» e tinham aqui um support cobiçado, que pode bem ter sido a recompensa pelo crescimento que concretizaram do primeiro para o segundo álbum. Ora bem, se o «Reinventing Evil» de estreia os tinha mostrado à procura de pé, o «O.M.E.N.» deste ano mostrou-os mais focados e amadurecidos, mas ainda sem conseguirem disfarçar as suas influências mais marcadas. Num cenário escuro, dominado pelos vermelhos, Beatriz Mariano comandou as tropas com o carisma que se lhe conhece, velada por uma pesada cortina de fumo, apoiada num grupo de instrumentistas competente que, entre riffs que lembram os Pantera, outros que trazem à memória os Machine Head e a «Six Pounder» dos Children Of Bodom, sabem como fazer um melodeath moderno, com potencial para crescer, mas a que ainda faltam os ganchos necessários para perdurarem.
ALINHAMENTO OKKULTIST: «Death To Your Breed» | «Back From The Dead» | «Plasmodium» | «Meet Me In Hell» | «Sacred Brutality» | «Sixpounder» | «Sign Of The Reaper»
Os GAEREA, que subiram pontualmente ao palco às 22:00, soaram fora deste mundo. Ressalva: o som da sala não os beneficiou. Demasiado carregado nos médios, com muito som de bateria e voz, e as guitarras a não conseguirem furar!, a mistura na plateia só soou equilibrada em alguns pontos estratégicos da sala – nesta noite o sweet spot do LAV estava mesmo atrás da régie. Ora bem, assumindo que a maior parte da plateia não anda de um lado para o outro na sala, é de crer que o som não tenha estado brilhante para a maioria dos presentes. Verdade seja dita, olhando ao redor no final do concerto, notando as pessoas que acabam por desistir de comprar merch porque “a fila está demasiado grande”, fica-se nitidamente com a sensação que isto do som estar “bom ou não” provavelmente é mesmo só um pormenor para quem está ali a observar. Neste primeiro, e último, concerto de 2023 em Lisboa, estiveram no ponto. Uma banda em ascensão, em topo de forma, a recolher os frutos do trabalho árduo que tem vindo a desenvolver. Dúvidas restassem, afirmaram-se com a força que (já) são. Mais não fosse, porque, ao contrário da banda que os precedeu naquele palco, têm os ganchos (quase todos) necessários. Sente-se a adrenalina, o prazer de terem ali chegado, a satisfação de o conseguirem fazer, num país em que tantos só ajudam a puxar para baixo.
Mascarados e anónimos – fora do círculo mais próximo da banda, entre trocas de formação, 99% dos presentes na sala não conhece a identidade de, pelo menos, dois dos músicos em palco –, os cinco vultos conseguem esconder-se, com os focos a mostrarem apenas silhuetas e várias colunas de LEDs a iluminarem o cenário. O palco mostra-se despojado de tudo o que é desnecessário e o que resta é a bateria e uns tripés de microfone adornados com símbolos ocultistas. A configuração é esparsa, mas desde os primeiros tons sinistros da abertura com «Mantle» é impossível não termos a sensação de que estamos prestes a testemunhar algo especial. Apesar de, no final do espectáculo, terem confessado que “uma ou outra coisa não funcionaram”, os músicos mostraram-se muito em sintonia desde o primeiro momento, todos muito seguros do seu papel. Verdade seja dita, precisaram de apenas uma canção para agarrarem o público. A prova disso? Um primeiro tema com a plateia totalmente estática, fixada no palco, a absorver o que de lá vinha. Chegados à «Deluge», segunda peça do alinhamento, já estava toda a gente a corresponder aos muitos apelos do ágil mestre de cerimónias (“Lisboa! Lisboa!”), que tinha pela frente um mar de punhos cerrados em direcção ao palco, a socarem o ar durante os compassos mais carregados de groove que alternam com as inevitáveis, e impiedosas, descargas de blasts.
A partir daí, o que se segue é um borrão. Numa sexta-feira à noite, fim de semana à porta depois de uma semana puxada de trabalho, uma fuga às agruras do dia-a-dia é sempre bem vinda, mas neste caso foi algo que se concentrou mais na realidade e em como não precisamos de imaginação hiper activa para transmitirmos as oscilações que a vida real pode oferecer. Os GAEREA sabem certamente como traduzir esse sentimento na sua música, e oferecem catarse genuína. Em termos de espectáculo, a verdade é que já sabem exactamente como conjurar uma descida auditiva ao abismo – e o que temos pela frente é um grupo que, em palco como em estúdio, consegue transmitir altas doses de atmosfera, de agressividade, de intensidade. Não há nada estereotipado aqui; à excepção dos triggers, soa tudo orgânico, natural, com um tanto de sombrio e outro de edificante. E sim, é como se, além de toda a desolação, houvesse ali um breve leve vislumbre de esperança e de luz. O espectáculo avança e começa a tornar-se notório que, musicalmente, o mais recente «Mirage» é tudo o que o álbum anterior prometia, e ainda um pouco mais, quase como se a banda tivesse encontrado ali a fórmula que sempre almejou. O foco nos riffs dissonantes assume agora um toque mais melódico, as dissonâncias tornaram-se mais agradáveis harmonicamente, e percebe-se que vinham a lutar por esse equilíbrio.
Análises de minúcia à parte, às vezes mais vale mesmo deixar o coração falar alto, fechar os olhos e absorver. Ali ao lado está alguém em tronco nu, a destilar testosterona no pit, mas são mais os que tentam interiorizar a experiência. Às tantas torna-se impossível decifrar onde um tema começa e o outro acaba; a próxima hora parece um fluxo contínuo de musicalidade extrema – algo como se o H.P. Lovecraft tivesse abandonado o sobrenatural e ficado melhor por isso. Em outros momentos, é como se os GAEREA tivessem evoluído além da própria necessidade de escreverem canções e, em vez disso, tivessem optado por destilar uma infinidade de peso ritualístico. Onda após onda de riffs, onda após onda de blastbeats estrondosos, onda após onda de rosnados poderosos.