De desconhecidos num nicho musical, os GAEREA passaram, em poucos anos, a ter um reconhecimento internacional que os torna numa das mais importantes bandas por cá. Com «Mirage», o novo trabalho, muitos são os olhos postos naquilo que os vultos negros vão oferecer. Conversámos com um dos vultos negros, o vocalista do conjunto portuense.
Em todo este processo, entre cancelamentos e um novo disco, sentiste a pressão?
Não. Se há coisa que não sentimos, foi pressão em lançar um álbum, ou até continuar o «Limbo» num novo disco. Apesar de não termos conseguido grandes tours com ele. Houve foi a frustração do que podíamos ter feito com o «Limbo», mas também acho que foi ela que deu a inspiração para fazer um novo disco. Fizemos tantas coisas com o «Limbo», menos uma tour, não fomos para a estrada com ele. Criámos algo que não vamos ter para o «Mirage» porque não temos tempo, vamos já ter de ir para a estrada com ele. Não sentimos pressão nenhuma, cumprimos os dois anos, porque somos uma banda activa e compomos bastante, ao ponto de poder colocar cá fora um trabalho a cada dois ou três anos.
Numa conversa anterior, após o «Limbo», disseste nada haver preparado, ou escrito, para um novo trabalho. Se fosses para a estrada com «Limbo», este disco chegava mesmo assim tão rápido, nesse intervalo de dois anos?
Se tivéssemos conseguido ir para a estrada em Janeiro de 2021, quando voltámos a ficar fechados, ainda estávamos agora a compor o «Mirage», que também não seria o álbum que é agora. Nem consigo prever o que seria. Por um lado, fico contente por termos um novo álbum no momento perfeito para lançar um, mas não tinha ficado triste se pudesse ter ido para a estrada com o «Limbo». Tínhamos tour com Harakiri For The Sky e Schammasch, que já não vamos fazer porque deixou de fazer sentido para nós, mas que gostava de ter feito. Coisas foram adiadas, que algumas, entretanto até fizemos, mas que queria ter feito na altura. Perdemos dois anos. O que estamos a fazer este ano, que é afirmar-nos, neste estilo, para milhares de pessoas, já o poderíamos ter feito o ano passado, por exemplo. A uma certa altura, é fixe fazermos isto, não termos parado e continuado com a inspiração, sermos uma banda maior que éramos no «Limbo», mas também acho que não perdemos o comboio,ficámos à espera que voltasse a passar para podermos fazer coisas.
No meio da lotaria do cancela/adia, não achas que tudo resultou bem, pois as pessoas regressam a casa depois de vos verem nos festivais, e surge um novo disco de estúdio, com toda a memória ainda fresca?
Por isso é que digo ser uma excelente altura. Tudo isto foi o timing perfeito. Pudémos ir para a estrada antes dos festivais de Verão. Fizemos umas pequenas tours, antes deles. Não caímos de paraquedas no Hellfest, depois de dois anos sem tocar. Já fomos para lá com um tema novo. Ao longo do Verão, consoante íamos lançando música nova, tocávamos nos festivais, que nos permitia testar, ensaiar. Agora vamos com uma estaleca muito maior para a tour, porque temos um álbum pronto, que foi trabalhado com tempo. Conseguimos trabalhar ao longo do ano e preparar esta tour e a América Latina no final do ano. Vamos tocar mais uma ou duas músicas novas, mas os singles já tocámos ao vivo, várias vezes. Não vai ser aquele caos de ter de tocar cinco ou seis músicas novas, sem as ter experimentado. É o bom de tudo isto ter encaixado, finalmente, nos carris certos, passados dois anos de isso não acontecer tão bem.
O que é o «Mirage» nesta void society?
É uma continuação, noutra perspectiva. É o voltar a ver o mundo na terceira pessoa, da mesma maneira que no «Unsetling Whispers», onde a narrativa era já na terceira pessoa. Sem entrar em devaneios, considero este álbum mais realista e visual do que o «Limbo» era. Consigo ver exactamente o filme todo, à medida que as letras vão acontecendo. São pequenas curtas-metragens, ou até um quadro, sobre o que vai acontecendo. Um álbum bastante visual, para mim, e que pega em pequenas lutas, como a percepção contra a realidade. Algo que já tínhamos trabalhado antes na «Null», ou na «Glare». O título «Mirage», tem tudo a ver com a capa do álbum. Não por nos valorizarmos como “ouro”, mas pelo contrário. Aquilo que vês numa fachada como algo brilhante e valioso, a partir do momento em que abres o álbum e percebes que é agoniante e até um pouco destrutivo, acaba por não ser tão valioso. O que entendes como valioso, a partir do momento que tiras a máscara, perde o seu valor. Abres o livro, neste caso o álbum e as letras, e vês que não tens nada de rico ou valioso, fala-te da solidão, da angústia. A solidão é algo muito trabalhado neste disco. Há dois tipos de solidão. A do individuo nas cidades, que trabalhámos bastante, e outra que aprendi com a pandemia. A solidão de aprenderes a viver com a tua própria solidão.
Uma solidão que acaba a não ser assim tão negativa.
Fazeres um zoom out de toda a social media que te rodeia. Recostares-te e veres que há coisas em ti que podem servir de inspiração. Não precisamos de procurar sempre coisas novas para nos inspirarmos. Se a pandemia trouxe algo de bom, para mim e para a malta da banda, foi entendermos a preciosidade de perceberes como tu podes ser um elemento criativo estando sozinho. Aprender a estar sozinho é algo que devíamos todos fazer. A sociedade vê a solidão como algo destrutivo, mas pode não ser assim. Trabalhámos um pouquinho dessa solidão em alguns momentos do disco. Se calhar não estava a pensar nisso ao escrever os temas e textos. Agora que já os tocámos e pude reflectir sobre as coisas, acabo a perceber o que estava a sentir, quando o estava a fazer. O álbum apareceu tão depressa, que tudo estava lá, mas só agora consegues olhar para a peça e perceber onde estavas com a tua mente. Há coisas que vamos aprender sobre nós, e sobre este disco, à medida que o formos tocar e que for crescendo nas pessoas também. Não é um ponto final. Há coisas que ainda estou a reflectir, que falamos no «Unsettling…». Se em 2016 ou 2017 eram reais para nós, tento perceber se hoje ainda podem existir. «Mirage» ainda é o mundo da vortex society, simplesmente visto numa outra perspectiva.
Referes a capa, leva-me a pensar que apesar de vocês se apresentarem como um colectivo, uma negação do eu, a ausência da imagem, a anti-imagem, acabam a ser um grupo que assenta muito na imagem que transmite, que vive da exploração do multimédia.
A nossa “anti-imagem”, que não vejo assim, mas como anti identidade pessoal, nunca está lá, porque tentamos ser o mais neutros possível. Agora uma coisa é aquilo que escreve e acreditas, outra coisa a infelicidade do momento em que precisas de ter uma imagem para promover algo. Algumas bandas podem fazer isso, mas infelizmente não somos uma delas. Não podemos lançar o álbum cá para fora e as pessoas irem em busca dele por sermos uma banda de culto. Somos uma banda nova, que se está a afirmar muito aos poucos. Temos que arranhar muito para lá chegar, tocar em muitos festivais, passar noites a conduzir sem dormir, para conseguirmos mais duas, três, quatro pessoas que ouçam a nossa música. Temos que investir na imagem. O álbum não é só a música. É tudo. Nós ainda não acabámos a composição do «Mirage» nesse aspecto todo. Para mim, não vejo os vídeos, as fotos, que vamos lançar para promover a tour, que vão sair nos próximos dias, como objectos promocionais. São coisas que fazem todo o sentido e já estava a pensar nelas quando estava em estúdio a compor o disco. Temos um vídeo para esta música e tem de ter aquilo para complementar com isto. Não são só materiais promocionais que temos de ter. São promocionais, claro, mas perdemos tempo com eles e acho que o álbum fica incompleto se não o fizermos. Gostava de fazer mais vídeos, vários photo shoots em sítios diferentes. Não é para termos algo para postar todos os dias, mas tem que fazer sentido para o disco e o que estamos a fazer. Gostava muito de ser uma banda “à antiga”, num mundo “à antiga”, em que lançavas um disco e as coisas iam acontecendo. Lançavas um teledisco, se pudesse ser, e as coisas aconteciam. Hoje estamos num mundo a competir pela atenção das pessoas. Já que vais ter de andar à luta por essa competição, para que as pessoas olhem para ti, então mais vale perder tempo e ter esse conceito nas coisas. Abraçar esse aspecto promocional, como algo que faz parte do álbum e não o contrário.
Da forma que te tens referido sobre a composição dos álbuns, ao longo dos anos, fico cada vez mais com a sensação que eles saem como uma pulsão, que depois retocas. Não te sentas durante meses a fazer um disco.
Pelo menos a nível musical. A nível conceptual é um bocadinho diferente, não consigo fazer um álbum sem saber o que ele vai ser. Não consigo escrever música e depois fazer as letras. Não consigo trabalhar assim. Tem de haver textos iniciais, algumas notas. Por muito que não seja completamente finalizado, tenho de saber o que o álbum vai retratar. Isso ajuda depois na composição. Há de facto uma pulsão, principalmente este álbum que foi composto em duas ou três semanas no máximo. Todos esses textos ajudam para que a pulsão aconteça. Já sabes o que o disco é, que tipo de atmosfera vai sair dali. Já não é compores uma música porque soava bem na cabeça e depois fazeres um conceito para ela. Vejo ao contrário. O filme está feito, o script está lá, e depois vais musicar aquela ideia. Principalmente neste disco, é mais assim e foi algo que fomos aprendendo e funciona bem com a gente. Faz todo o sentido e ajuda que as coisas sejam mais visuais à partida e por isso este disco é tão visual, muito mais que o «Limbo», por exemplo.
Aquando do «Limbo», recordo conversamos e sentir o teu entusiasmo por teres dois ou três festivais agendados. Neste Verão fizeste os maiores festivais europeus, incluindo Hellfest e Wacken. Esperavas conseguir isso tão rapidamente?
Trabalhámos bastante para isto. Acho que tudo o que temos, merecemos. Não me sinto à parte num festival. Também não ficamos a pensar se tocamos à frente de algumas bandas ou atrás. É sempre bom reflectir nisso. Crescimento sem arrogância, ou começas a criar problemas. Claro que depois de uma pandemia, teres um ano em que consegues fazer três ou quatro dos maiores festivais do mundo, com dois disco oficiais, é completamente abismal, fantástico. É a cereja no topo de um bolo que começou a ser mal cozinhado ao início, com a pandemia. Não nos sentarmos no sofá, à espera que a pandemia acabasse, fez com que os festivais se interessassem. Fez com que os promotores vissem que não parámos, que íamos lançar novo álbum, que havia coisas com qualidade. Isso interessa às pessoas. Não precisamos de ser a banda mais rápida, mais agressiva, mais extrema do mundo, porque não somos pessoas assim, mas se conseguirmos manter uma regularidade, um plano forte, que seguimos à risca, trabalhando para ele diariamente, as coisas vão acontecer. Acontece com todos e não é só com Gaerea.
Esta experiência de estrada, as contingências dos festivais… o que vos muda como músicos?
Não temos ambição de tocar em X festival ou Y. Temos ambição de fazer um bom lançamento, em condições, sem pressões. Claro que algo muda. Tenho a certeza que a banda que saiu daqui para o Wacken no dia 1 de Agosto, não tem nada a ver com a banda Mesmo a nível performativo, fomos crescendo. Fizemos quatro festivais em que o primeiro, Wacken, as coisas estavam lá, aquela explosão de coisas a que não estamos habituados, depois o Party San foi muito superior a nível performativo. Se algo nos muda é a título performativo. Conseguimos fazer mais coisas, habituados a palcos maiores, sabemos comunicar com as pessoas. Aos meus olhos, crescemos de concerto para concerto e isso notou-se bastante nestes festivais que fizemos. Fizemos o Brutal Assault num palco pequeníssimo, mas cheio de gente para nos ver, ao mesmo tempo que estava a tocar Leprous e Solstafir. Tudo isso cria uma escada de conforto, que vamos precisar para uma tour de trinta dias, a maior que já fizemos. Isso muda-nos para melhor, cria expectativas, mas é saudável.
A um dado momento, na digressão britânica, aparecem quatro em palco. No Wacken aparecem cinco. Gaerea não é uma banda, é uma entidade. Pode ter três em palco, pode ter vinte. No entanto não deixou de ser notado, em particular no VOA.
Pois, a verdade é que estávamos quatro em palco há quatro ou cinco meses. Tivemos de fazer adaptações no line up, porque a vida acontece. Conhecemos duas ou três bandas que fazem 30 anos de banda, sempre com as mesmas pessoas. Infelizmente isso já não acontece no mundo em que vivemos, em que “commitment” é uma palavra demasiado cheia para o significado que tem. Tivemos de fazer mudanças. Nunca deixámos de ser cinco, não estávamos era prontos para tocar como cinco. Há coisas que não fazemos, uma é cancelar concertos, ou porque não estamos preparados ou porque falta alguém. A partir do momento em que ficámos sem as pessoas que saíram, arranjámos as pessoas que estão agora, simplesmente não estavam prontas ou ainda não podiam fazer as datas. O Wacken foi o primeiro concerto em que realmente nos sentimos confortáveis para irmos os cinco. Não faz sentido não irmos, só porque as pessoas vão estranhar. Tudo fez de nós uma banda melhor hoje em dia, mais coesa, mais performativa, que não éramos, a meu ver.
Com esta digressão mal vai haver um lançamento caseiro, para «Mirage». Quanto tempo vão estar cá, até ao final do ano?
Meio mês, acho eu. Vamos fazer um mês inteiro na estrada a partir de 27 de Setembro. Vimos a Portugal duas semanas, vamos para a América Latina e voltamos a Portugal para o Natal. Deriva do facto de estarmos a ter três anos num, por isso é que tivemos uma agenda com mais de 100 concertos. E empilham-se ideias para o ano, que já estamos a pensar. É para isso que a gente trabalha, não somos uma banda de estúdio, que compõem álbuns. Queremos estar na estrada, ir a todos os cantinhos que ainda não fomos e só assim é que uma banda como nós consegue chegar a algum lado. Quanto mais tempo conseguirmos estar na estrada com o «Mirage», vai ser isso que vamos fazer, seja um, dois, ou quatro anos. A partir do momento que conseguirmos fazer isto, muito dificilmente nos vamos sentar para compor um disco.
Após o «Limbo» sair, de repente muitos descobrirão Gaerea e vão ver o futuro em vocês. Estando em Portugal, depois de colocados num patamar, estão preparados para aquela fase em que vão de bestial para besta, para os habituais haters?
Vai acontecer, aliás, já acontece. Estamos preparados para isso. Não somos assim tão agarrados a este país para nos deixarmos levar por frustrações. Sou agarrado às minhas inspirações, e uma delas é a cidade do Porto. Nota-se bastante na nossa música. Adoro o sítio onde estamos sediados como banda, serve-nos de inspiração e temos muitas amizades lá. Não estamos apegados tão intensamente ao público português, para estarmos a sentir estas frustrações do “tão perto”. Não ligamos. Prefiro dar atenção aos fãs que estamos a conseguir na Noruega, que não pensava que viéssemos a ter. É um país tão vincado com as origens do estilo. Não nos interessa levar com frustrações, ou pessoas que acham que antes é que era bom, quando não gostavam assim tanto. Aconteceu com a maior banda deste país, ainda acontece. A verdade é que vão agora fazer os Coliseus e eles estão cheios. É um desdém que acontece em todos os países, com bandas locais, até na Alemanha têm isso. Quando as coisas estão todas ao mesmo nível, as pessoas apoiam, ou dizem que o fazem. Quando alguma consegue fazer aquele saltinho, para fazer mais uma coisinha, ou duas, já não é assim. E não estou a dizer que somos a banda mais interessante, conheço aqui várias que são melhores, simplesmente trabalhamos mais. Sacrificamos mais da nossa vida para que isso aconteça. Se isso faz comichão a algumas pessoas, tenho pena.
«Mirage» está disponível através da Season Of Mist, e já podes ouvir o álbum completo no player em cima.