Num dia em que a descarga industrial dos BIZARRA LOCOMOTIVA, a força dos SEVEN HOURS AFTER VIOLET, o desvio estilístico dos EAGLES OF DEATH METAL, a sofisticação dos OPETH e a excentricidade de TILL LINDEMANN compuseram um retrato caleidoscópico do que o metal pode ser, os KORN serviram como catalisador final. Uma libertação que selou o segundo capítulo do EVILLIVƎ com suor e redenção.
O relógio marcava pouco depois das 15:00 quando os primeiros riffs começaram a brotar do PA e a ecoar entre as colinas de Belém. O Estádio do Restelo, banhado por um calor sufocante, recebia os primeiros milhares de festivaleiros de camisola preta, chapéu de pala e garrafas de água da mão. A luz estalava no cimento quente e na cobertura do relvado; a brisa do Tejo, que se fez sentir ao final da noite do primeiro dia do evento, parecia ter desaparecido. No entanto, ninguém parecia importar-se. O segundo dia do EVILLIVƎ FESTIVAL a começar — e tudo prometia que seria uma jornada extrema, não só em decibéis, mas em emoções.
Ao longo de mais de dez horas, cerca de 20.500 pessoas atravessaram uma autêntica maratona de peso, virtuosismo, provocação e comunhão. O dia arrancou com intensidade nacional, passou por revelações internacionais e culminou num verdadeiro momento de catarse colectiva com os KORN. Pelo meio, houve suor, peixe, bolos, solos progressivos e um público que, mesmo à beira da exaustão, respondeu com alma a cada descarga sonora.
Coube aos BIZARRA LOCOMOTIVA darem início aos procedimentos. São já mais de três décadas de carreira, mas a banda continua a subir aos palcos como se cada concerto fosse uma batalha. O relógio ainda não marcava as quatro da tarde quando o rugido das máquinas começou a fazer tremer o chão do Restelo. Em apenas 30 minutos, a banda liderada por Rui Sidónio transformou a apatia do calor em fervor industrial.
Temas como «O Anjo Exilado», «Egodescentralizado» e «Síndrome De Deus» foram cuspidos em sequência, com aquela precisão mecânica que é marca registada da banda. O som estava poderoso, e o público — especialmente o núcleo duro nas primeiras filas — respondeu com braços erguidos, vozes em uníssono e olhos vidrados. O inevitável mergulho do endiabrado Rui Sidónio para o meio do público aconteceu quase no final, já com «Escaravelho» a rebentar como hino final. Encharcado em suor, o vocalista acaboou por sair de cena exactamente como entrou: em estado de combustão e, no final, os BIZARRA LOCOMOTIVA ofereceram uma descarga que, embora breve, se revelou inesquecível.














Se alguém ainda achava que o nu-metal era uma coisa do passado, os SEVEN HOURS AFTER VIOLET encarregaram-se de provar o contrário com uma actuação que misturou frescura, brutalidade e um apelo quase cinematográfico. Fundada em Los Angeles por músicos com ligações a vários projetos da cena alternativa californiana — com especial destaque para o lendário Shavo Odadjian, baixista dos SYSTEM OF A DOWN —, a banda trouxe ao EVILLIVƎ FESTIVAL uma proposta moderna e musculada, sem nunca renegar o espírito de catarse emocional que sempre definiu o género.
Mal entraram em palco, foi como se uma nova frequência sonora se instalasse no estádio. A afinação das guitarras revelou-se profunda e cavernosa, o baixo vibrava nas costelas e os ritmos, por vezes sincopados, convocavam o corpo a mexer — mesmo nos momentos mais melódicos protagonizados pelo guitarrista Alejandro Aranda. O vocalista Taylor Barber, por seu lado, alternava entre um registo limpo e rugidos vindos das entranhas, criando uma tensão constante entre fragilidade e agressão.
A comunicação com o público foi directa e eficaz. Ainda antes da terceira canção, Barber — ofegante, mas sorridente — lançou o desafio: “Quantos de vocês já fizeram crowdsurf? Quero ver o maior da vossa vida nesta próxima canção!” A resposta foi quase instantânea, com corpos erguidos em simultâneo, a flutuarem sobre o público como marionetas de uma alegria primitiva, ao som de um groove demolidor. O momento teve tanto de caótico como de libertador, e acabou por se tornar numa das imagens icónicas do segundo dia do festival.
A banda mostrou estar perfeitamente sincronizada, não só musicalmente, mas também no que toca à sua presença cénica. As luzes piscavam a compasso com os riffs, o baterista tocava com uma intensidade quase tribal, e Shavo Odadjian, sempre discreto, mas imponente, mantinha a base rítmica coesa com o seu estilo inconfundível. Para quem os conhecia de nome, foi uma confirmação. Para quem os descobria ali, foi um choque — no melhor dos sentidos.
O concerto terminou com um verdadeiro murro no estômago: uma última descarga marcada por uma barragem de andamentos oscilantes e um mosh pit que tomou conta da zona central da plateia. Os gritos finais, tanto da banda como do público, não deixaram dúvidas — os SEVEN HOURS AFTER VIOLET foram mais do que uma curiosidade no cartaz da edição de 2025 do EVILLIVƎ. Foram uma das revelações deste segundo dia, e talvez do festival inteiro. Saíram ovacionados e com uma base de fãs portugueses que, se depender do impacto deixado por este concerto, já está garantida para o futuro.






Em pleno final de tarde lisboeta, com o sol a descer lentamente sobre o Tejo e o calor ainda a morder a pele, a entrada dos EAGLES OF DEATH METAL em palco deu ao EVILLIVƎ uma mudança brusca de tom. Depois do furacão dos SEVEN HOURS AFTER VIOLET, o colectivo liderado por Jesse Hughes trouxe ao uma lufada de rock’n’roll descomplicado, vestido de glitter e com um sorriso no rosto — mesmo que o público, maioritariamente ali por bandas mais extremas, tenha demorado a alinhar no espírito da coisa.
Com a abertura energética de «I Only Want You», ficou claro que a banda ia apostar numa festa à sua maneira: riffs simples e eficazes, refrões pegajosos e uma atitude descontraída que mais parecia saída de um bar californiano em vez de um estádio europeu em modo festival. Hughes, com os seus habituais óculos de sol, bigode farfalhudo e um charme entre o cómico e o provocador, foi mestre de cerimónias desde o primeiro segundo. «Don’t Speak (I Came to Make a Bang!)» foi a explosão que consolidou o ambiente, com os primeiros sinais de dança a fazerem-se notar um pouco por todo o recinto.
Em «Cherry Cola» e «I Want You So Hard (Boy’s Bad News)», a banda abraçou o seu lado mais festivo e provocador, com Jennie Vee a destacar-se não só pela presença visual — num misto de glam rock e punk noir — mas também pelo groove coeso que segurou toda a estrutura rítmica. A baixista, já há alguns anos parte integral da formação da banda, foi constantemente apontada por câmaras e fãs, numa espécie de culto instantâneo que se formou ali à sua volta.
No entanto, foi em «I Love You All The Time» que Jesse Hughes assumiu um registo mais emocional. O tema, lançado na sequência dos atentados de Paris em 2015, continua a carregar um peso simbólico profundo. “Não é a canção mais pesada que vão ouvir hoje, mas talvez seja a mais sincera”, comentou antes de a tocar. A resposta do público foi silenciosa, respeitosa — um daqueles raros momentos num festival em que se sente, por instantes, que há algo maior do que a música a ocupar o espaço.
Apesar da entrega e da competência, o contraste com o resto do cartaz era evidente. O groove vintage e o espírito descontraído dos EAGLES OF DEATH METAL funcionaram para uma parte do público, mas pareceram perder outros pelo caminho — especialmente os que já esperavam impacientemente pelos OPETH ou TILL LINDEMANN. Ainda assim, a banda manteve a postura e terminou com «Speaking In Tongues», encerrando o concerto de forma enérgica e fiel à sua identidade.
Ete foi também o último espectáculo da mais recente digressão europeia da banda, o que deu à actuação um sabor de celebração para quem a acompanhou mais de perto. As trocas de olhares entre músicos, os sorrisos de alívio e os abraços no final denunciavam que, mesmo num ambiente um pouco mais difícil, os EAGLES OF DEATH METAL tocaram com o coração. E sim, este até pode não ter sido o concerto mais explosivo do dia, mas foi certamente um dos mais distintos — e, para alguns, uma pausa luminosa entre duas tempestades sonoras.







Quando os OPETH subiram ao palco do EVILLIVƎ, o sol ainda castigava o público com uma intensidade quase surreal. O céu limpo e o chão a escaldar criavam um cenário improvável para o metal progressivo intricado e melancólico da banda sueca — mas foi precisamente nesse tipo de contraste que o concerto encontrou a sua força. Com os primeiros acordes de «§1», o Estádio do Restelo mergulhou subitamente numa suspensão de tempo e de espaço. A transição para «Heir Apparent» foi devastadora: riffs serrados, mudanças de tempo abruptas e uma interpretação vocal que alternou entre o gutural mais abissal e a serenidade quase espectral.
Mikael Åkerfeldt, como sempre, assumiu o papel de maestro e contador de histórias — discreto mas sarcástico, sério mas acessível. Pouco depois das primeiras músicas, fez uma observação que arrancou gargalhadas cúmplices: “É difícil para uma banda da Suécia enfrentar este calor… esperamos parecer mais energéticos do que realmente estamos.” Foi a única concessão ao desconforto — porque o que se seguiu foi uma actuação meticulosamente executada, em que cada nota parecia cair com o peso certo, no lugar certo.
A execução de «§7» foi um dos momentos mais desafiantes e recompensadores do set. Apresentada pelo Sr. Åkerfeldt como uma peça “tão intrincada que às vezes até nós temos dificuldade em tocá-la”, a canção revelou a capacidade única da banda em conjugar técnica extrema com emoção palpável. As passagens instrumentais, entre o jazz sombrio e a agressividade extrema, foram recebidas com um silêncio reverente por parte de um público que, mesmo sob o calor, manteve uma atenção quase religiosa.
No entanto, foi com a incontornável «In My Time Of Need» que a ligação emocional se aprofundou. A delicadeza acústica, aliada a uma interpretação vocal contida, criou um raro momento de vulnerabilidade colectiva. Braços ao alto, olhos fechados e um silêncio quase absoluto entre os milhares presentes — o tipo de momento que não se planeia, mas que marca para sempre um concerto.
Sem pausas desnecessárias, a banda avançou para «Ghost Of Perdition», fazendo um contraponto brutal à ternura que a tinha antecedido. Aqui, os OPETH mostraram o seu lado mais esmagador, com uma prestação rítmica de cortar a respiração e solos em espiral que pareciam escavar túnel após túnel na consciência do público. «Sorceress», do álbum homónimo de 2016, surgiu como um exemplo da fase mais recente da banda — menos death metal, mais psicadélica, com influências do rock progressivo setentista, mas ainda profundamente marcada por um sentido dramático e melódico muito próprio.
A estrutura fluida da canção permitiu à banda explorar dinâmicas mais livres, e a actuação serviu também como mais uma prova de que os OPETH continuam a evoluir, mesmo quando isso significa que podem vir a alienar parte da base mais tradicionalista dos seus seguidores. O grande final chegou com “Master’s Apprentices”, uma peça épica retirada de «Deliverance» que sintetiza o ADN da banda: peso esmagador, secções rítmicas complexas, harmonias obscuras e uma intensidade que cresce até ao limite. A prestação foi forte q.b. — não só pela carga sonora, mas pela forma como a banda conseguiu mantê-la precisa e viva até ao último segundo.
Visualmente, o concerto manteve-se minimalista. Sem grandes projecções, pirotecnia ou cenografia, a aposta foi na música — e ela bastou. O som esteve irrepreensível durante todo o espectáculo, com uma nitidez que permitia distinguir cada linha de baixo, cada viragem de bateria, cada arpejo. A secção rítmica, comandada por Waltteri Väyrynen, foi um dos pilares do concerto, enquanto as teclas subtis de Joakim Svalberg ajudaram a compor atmosferas densas, quase litúrgicas.
No final do concerto, o público respondeu com uma ovação que misturou gratidão e respeito. Muitos ficaram estáticos durante uns segundos, como que a processar o que tinham acabado de ouvir. Outros, simplesmente, sorriam em silêncio. A banda agradeceu sem grandes cerimónias, com Mikael Åkerfeldt a despedir-se com um simples “Obrigado, Lisboa. É sempre um prazer” — e a deixar o palco com uma dose de elegância só acessível a quem sabe que não precisa de dizer mais nada.
Numa tarde em que o calor parecia querer derreter tudo à volta, os OPETH provaram que a subtileza, a sofisticação e a transcendência também têm lugar num festival marcado por extremos. Um dos grandes momentos musicais — e espirituais — deste segundo dia do EVILLIVƎ.


















E, depois, veio o caos teatralizado. O concerto de TILL LINDEMANN no EVILLIVƎ foi uma peça de arte provocadora, bizarra e meticulosamente encenada para causar choque e admiração. O palco transformou-se num circo decadente onde tudo era possível: bolos voadores, peixes disparados com canhões, passeios pela plateia com câmaras montadas em chapéus, músicos mascarados a simular mutilações. Nada, mesmo nada, foi deixado ao acaso.
A actuação arrancou com «Zunge», faixa do seu mais recente trabalho a solo, marcada por uma batida arrastada e uma tensão quase sexual que estabeleceu desde bem cedo o tom para o que se seguiria: o grotesco como entretenimento, o obsceno como metáfora, e a teatralidade como arma. A plateia, em transe, deixou-se levar por «Schweiss», com Lindemann a movimentar-se como um anfitrião perverso de um cabaré distorcido.
Seguiu-se uma sequência de temas retirados tanto do seu percurso mais recente a solo como do projecto Lindemann (originalmente criado com o sueco Peter Tägtgren, dos HYPOCRISY e PAIN). «Fat» e «Altes Fleisch» mantiveram a toada industrial, hipnótica e provocadora, enquanto «Golden Shower» arrancou gritos entre gargalhadas — com as projecções no ecrã a intensificarem o impacto visual de cada refrão. A coreografia era milimétrica, o figurino meticulosamente exagerado, e a mensagem não deixava margem para equívocos: Till Lindemann não estava ali para agradar. Estava, isso sim, para confrontar.
«Sport Frei» introduziu a sátira de masculinidade militarizada, com a banda a executar passos de marcha sincronizados, acompanhada por imagens de ginásios soviéticos e atletas em poses absurdas. O absurdo foi crescendo com «Blut» e «Allesfresser», esta última com Lindemann de joelhos, bergado sobre o peso da idade e do calor que ainda se fazia sentir. Entre o desconfortável e o irresistível, o espectáculo tornava-se mais físico, mais visual, mais imersivo e mais… perturbador, porque não?, a cada canção tocada.
«Praise Abort», um dos momentos mais esperados do alinhamento, surgiu como uma espécie de clímax temático: provocação frontal, humor negro e uma batida infecciosa que pôs o estádio inteiro a abanar a cabeça. A reacção dividida — parte riso, parte desconforto — era, em si, o maior triunfo. Pouco depois, a «Platz Eins» sublinhou o narcisismo e o culto da imagem com uma encenação em que Lindemann andou a passear na plateia enquanto se filmava a si próprio com uma câmara montada num chapéu, transmitida em directo nos ecrãs gigantes. Entre o voyeurismo e o egocentrismo, voltou a baralhar as fronteiras entre personagem e performer.
Foi então que chegou o momento mais caótico e memorável da noite: «Fish On». Ao som de um refrão infeccioso e grotescamente divertido, Lindemann disparou peixes reais para o público com um canhão pneumático — uma acção que, num qualquer outro contexto, seria ofensiva, mas que aqui foi recebida com gargalhadas e aplausos. Um dos peixes acabou inevitavelmente na sua boca, numa imagem grotesca e icónica que muitos vão guardar como símbolo da noite. A excentricidade atingiu um novo pico com o baterista mascarado de palhaço a simular sabe-se lá o quê em palco — tudo num tom que oscilou entre o escatológico, o cómico e o teatral.
Na recta final, a intensidade manteve-se com «Du Hast Kein Herz», num registo um pouco mais soturno e hipnótico, antes de «Skills In Pills» trazer de volta a pulsação industrial dançável que tanto caracteriza o projecto. Para fechar, «Ich Hasse Kinder» — agressiva, rítmica e carregada de sarcasmo — surgiu como o último murro no estômago, deixando o público entre o choque e a catarse.
Durante todo o espectáculo, a performance visual foi tão (ou ainda mais) importante que a música. Ecrãs gigantes mostraram imagens simultaneamente absurdas, pornográficas e simbólicas, naquilo que foi só um aperitivo para o concerto em nome próprio que o vocalista dos RAMMSTEIN vai protagonizar por cá lá mais para o final do ano e que se adivinha ainda mais extremo, numa mistura de cabaré com o cinema de terror, de metal industrial com teatro de vanguarda, onde não há qualquer espaço para a neutralidade: ou se ama, ou se odeia.






















Com a noite a cair sobre Lisboa, chegou finalmente o momento mais esperado. Os KORN subiram ao palco do EVILLIVƎ como quem sabe exactamente o que o público precisa — e ofereceram isso mesmo em doses massivas. O alinhamento foi uma celebração da sua carreira, mas também uma declaração de força actual. «Blind», «Freak On A Leash», «Y’All Want A Single» ou «Here To Stay» foram recebidas como hinos por uma multidão em transe.
Jonathan Davis manteve-se concentrado e emocional. O seu timbre — único, vulnerável e furioso — cortou o ar denso como lâmina. A secção rítmica esmagou tudo por onde passava, e cada breakdown acabou por ser recebido com braços erguidos e gritos cocletivos. Durante a «Falling Away From Me» houve abraços entre desconhecidos, lágrimas contidas e uma comoção visível que atravessou o estádio.
À saída, muitos caminhavam em silêncio. Alguns com os olhos ainda húmidos. Outros a reverem vídeos nos telemóveis como que para confirmar o que tinham vivido. O segundo dia do EVILLIVƎ FESTIVAL 2025 foi um turbilhão — e ninguém saiu ileso. Para mergulhares mais fundo nessa actuação inesquecível, lê a nossa reportagem completa sobre o espectáculo dos KORN — um testemunho detalhado de um dos grandes momentos do ano para a música pesada em Portugal.
























