Anunciado de forma discreta, com uma recusa inicial por parte de Justin K. Broadrick em sequer dar entrevistas para falar dele, o disco novo dos GODFLESH, «Post Self», ainda assim conseguiu conquistar a redacção da LOUD! e certamente muitos dos nossos leitores. Se bem que a postura de silêncio e distância tomada pela banda faz de facto sentido depois de o ouvir e de o interpretar conceptualmente, ainda assim insistimos suavemente para que o Justin nos concedesse algumas palavrinhas, e o genial – e sempre simpático – músico lá nos concedeu uma rara (nesta altura) entrevista por email. Pode ter sido uma tentativa de despersonalização, mas a personalidade brilhante do britânico está de qualquer forma patente em cada palavra escrita.
Antes de mais, cabe-nos agradecer por te teres disponibilizado para esta entrevista. A primeira informação que tivemos foi de que não irias responder a entrevistas, pelo que apreciamos a excepção aberta. Dá-nos a sensação de que não queres falar muito sobre este disco novo, até pela forma como ele foi anunciado, muito em cima da sua data de lançamento e sem grandes alaridos. Sem querer provocar-te muito, era interessante começar precisamente por aí… ou seja, pôr-te a falar do porquê de não quereres falar.
Houve de facto uma ausência de “campanha” com este disco, como deduziste e muito bem, e isso foi inteiramente intencional. Há tão pouco na música que ainda está atrás de um véu, toda a mística à volta dos discos e dos artistas está agora muitas vezes perdida, no meio da epidemia de informação que nos assola. Pessoalmente, sempre fiquei intrigado com discos onde tudo era sugerido e críptico, e nunca desejei que as coisas me fossem explicadas. Sempre quis usar a minha imaginação, e é essa a intenção com o «Post Self». Estou a perguntar, não estou a afirmar. “O que é isto para ti? O que é isto?”
Das duas últimas vezes que falámos, uma foi sobre o «Hymns», quando foi reeditado, e outra foi sobre o álbum anterior, o «A World Lit Only By Fire», que por ser um álbum de “regresso”, também levou a conversas focadas sob o passado. Este é o teu primeiro disco em muito tempo que não tem esse tipo de bagagem. Agrada-te isso?
Este disco não tem qualquer tipo de ambição, e acho que aí é que reside a diferença essencial entre ele e as outras coisas que fiz nos últimos anos. Como consequência, este é talvez o disco dos Godflesh menos “afectado” desde o início do projecto. Mesmo com os primeiros trabalhos, por muito alienantes que fossem, mesmo assim desejava que a música “viajasse”, que fosse ouvida pelas pessoas, que fosse tocada ao vivo. Já este álbum, foi feito sem nenhum constrangimento desse tipo. Sem nenhum limite. Não foi feito para tocar ao vivo, nem sequer considerei essa possibilidade. Nem essa, nem nenhuma fora daquilo que queria explorar estéticamente. Aboli todos os tipos de preocupação que pudesse ter tido desde o início.
O press release que recebemos com o álbum toca nalguns pontos importantes, nomeadamente no facto deste ter demorado mais de dois anos a ser feito. Foram dois anos de trabalho intenso, ou de actividade esporádica?
Ao contrário do que acontece normalmente, fui eu próprio que escrevi o press release desta vez, com o objectivo de manter tudo conciso e, mais uma vez, escondido. A resoista é simples – o álbum fez-se ao longo de dois anos de trabalho esporádico. Só trabalhava quando me sentia inspirado. Como está de certa forma documentado, eu canso-me muito facilmente quando estou a trabalhar só numa coisa. Perco o foco, preciso de escapar para outros trabalhos, e daí ter sempre tantos projectos em andamento. Preciso de me sentir fresco e inspirado, por isso trabalho em tudo de forma intermitente, e muitas vezes simultaneamente também.
O título «Post Self» é algo que não me sai da cabeça durante as audições do álbum. É algo que sugeres que há menos de ti nestes temas? São um tipo de despersonalização/destacamento de ti próprio da tua obra?
O álbum também tem uma pequena componente auto-biográfica, mas na sua maior parte não o é. Resumidamente, o título significa morte, mas está carregado de outros significados também. É igualmente uma referência à perda do “eu”, da identidade, numa era que os indivíduos são ao mesmo tempo obcecados por si próprios. A um nível mais pessoal, é uma admissão do meu próprio sentido de identidade, na vida sinto-me muitas vezes como um espectados, como um voyeur da minha existência. Frequentemente me sinto desligado de tudo o que é imaginável.
No teu press release também falas de explorar um lado diferente de Godflesh. Diria que é algo que pode ser aplicado a todos os teus discos, mas depois disso mencionas especificamente o post punk e o industrial do fim dos anos 70 e princípio dos anos 80. Eram esse período e esses géneros que mais estavam na tua cabeça durante as sessões de escrita?
Para mim, o punk e o post punk, seguidos da música industrial do princípio, foram os primeiros estilos que me causaram impacto a muitos níveis, quando eu era essencialmente um miúdo, muito antes de ouvir qualquer tipo de heavy metal – nesse campo, os Black Sabbath foram a primeira banda que ouvi e que adorei. Basicamente, queria ir às minhas influências iniciais, as que esculpiram os Godflesh, as raízes. A música de que gostava antes do metal claramente moldou e muito o futuro dos Godflesh, e sim, concordo quando dizes que cada disco explora novas avenidas de influência, chamemos-lhe assim. O período áureo do post punk foi algo incrivelmente excitante, um período fervoroso na história da música moderna e um dos melhores de sempre, para mim. Um caldeirão de influências diferentes, a convergência do punk com dub e com abstracção, com krautrock e música electrónica, e por aí fora. Para mim, os Swans e os Sonic Youth foram a última onda de bandas mais importantes do post punk. Antes disso, os Killing Joke, Siouxsie And The Banshees, Crass, Throbbing Gristle, Public Image Ltd, The Birthday Party e várias outras. O que fazemos nos Godflesh é soldar as influências deste tempo com outras músicas radicais nas suas próprias épocas – como o nascimento do hip-hop, que foi essencialmente o punk outra vez.
Realmente, não vale a pena enganar as pessoas em relação aos moldes desta conversa – esta entrevista foi feita por email, e portanto corre-se o risco de repetir perguntas ou pôr-te a responder a coisas e a explicar conceitos de forma repetida. Mas era interessante saber se consideras que os temas de “ansiedade, depressão, medo, mortaidade e relações pais/filhos” que já disseste estarem expressos em «Post Self» são uma aproximação de certa forma mais íntima do que é costume contigo, e se isso não terá também ajudade a que queiras falar menos sobre o disco. Esperemos não teres respondido a isto já, de alguma maneira.
Pois, é esse o grande prazer das entrevistas por email, haha! Mas precisamente para não expôr cada ângulo e cada detalhezinho deste disco, era imperativo que só fizesse entrevistas por email, e muito poucas. O «Post Self» é muito pessoal mas também algo com que as pessoas se possam relacionar, e isso acabar por ser um standard dos Godflesh. A minha música e as minhas criações são geralmente produto de depressão e de ansiedade perturbadora, coisas com as quais tenho combatido a minha vida toda. A minha mãe sofreu de numerosos problemas de saúde mental durante toda a sua vida, por exemplo, e infelizmente não admite que isso me afectou de forma tão extrema.
Como é que vês estes temas a encaixar no vosso setlist? Se é que cabem de alguma forma? Imaginando desde já, seria uma mudança de mood total a cada tema destes.
De facto o álbum não foi concebido com actuações ao vivo em mente, o que acho que é algo muito positivo. Para mim, tudo gira à volta da música e da sua estética primeiro, e os concertos vêm em último lugar. O mood deste disco de facto é muito abrangente, e se isso acontecesse, preferia tocar a maior parte do álbum ao vivo, seleccionando apenas alguns temas apropriados do resto da nossa carreira à sua volta. Já fizemos concertos com “clássicos” dos Godflesh inúmeras vezes, por esta altura, e acho que é tempo de uma mudança radical – um setlist baseado à volta do «Post Self» com temas antigos escolhidos a dedo para complementar o ambiente, é nisso que estou a pensar.
Sem querer continuar a tirar muitas conclusões precipitadas sobre a tua “aura de silêncio” – da qual gosto genuinamente, por fazer lembrar uma altura em que não conhecíamos quase nada sobre as bandas e havia alguma magia no ar que se desvaneceu um bocado entretanto –, a verdade é que tudo parece de certa forma “final”. A distância entre vocês e o álbum, o título, os temas tratados, até o facto de haver duas canções com “end” no título, incluindo a última! Reavaliaste o futuro dos Godflesh nestes últimos tempos? Ainda vês o futuro da banda com alguma clareza?
Antes de mais, sim, tens toda a razão acerca da falta de magia que existe na música e da forma como é “vendida” hoje em dia… Em relação ao resto, não faço a mínima ideia. Honestamente. Não tenho qualquer plano. Este pode ser o primeiro álbum de muitos, ou pode ser o último de todos. Acho que a postura que tenho tido em relação a este disco é de reflexão da própria existência, no fundo: tudo é transitório, quase nada é permanente, e já não penso na minha música em termos de carreira. Os “comos” e os “porquês” são portanto irrelevantes.