Como cresceu, a Emma. Mesmo que artisticamente sempre tenha sido gigante, é inevitável, ao vê-la dar a confiante meia dúzia de passos desde a entrada via stage right até ao solitário piano (mais ou menos, vá, também lá estava a guitarra acústica, mas point being que o resto do palco estava vazio e imerso na escuridão) que a aguardava no centro do palco do luxuoso auditório da Culturgest, em Lisboa, pronto a dar início a mais uma digressão que se prevê triunfal, lembrarmo-nos dos seus metafóricos primeiros passos musicais, que nos fizeram começar a prestar-lhe atenção. Desde a rapariga de ar tímido que a partir de certa altura aparecia nas fotos dos Red Sparowes, mas que rapidamente se tornou presença fulcral na formação de uma banda que, ainda por cima, depende muito mais da desenvoltura instrumental do que a maior parte, ou aquela presença meio misteriosa por trás dos The Nocturnes e dos Marriages, que lhes conferiu a personalidade excepcionalmente atípica que tiveram durante a sua existência, ou até mesmo aquando do lançamento do já longínquo «Some Heavy Ocean», uma valente pedrada no charco dos “cantautores” mais alternativos, onde quer que seja que cada um de nós a tenha descoberto, é inegável que tem sido um privilégio assistir à sua evolução até ao estado de artista-maior que ostenta hoje, aparentemente sem qualquer tipo de esforço, pela elegância e naturalidade de tudo o que faz. E dizemos aparentemente, porque há realmente muito sofrimento pessoal nos últimos anos da vida de Emma, como tem sido reportado e como a própria não se nega a explicar, seja em entrevistas ou mesmo através das temáticas brutalmente honestas da sua música. Foi preciso muito para chegar aqui. A estes passos confiantes em direcção ao piano perante uma audiência rendida ainda antes da primeira nota ter sido tocada, uma sala esgotada que, como a própria elogiou a certa altura, demonstrou através do silêncio reverente e das palmas efusivas uma devoção absoluta à ídola da noite.
Isto tudo, e a simplicidade continua a ser a nota dominante da actuação da norte-americana agora residente em Portland, no Oregon. E não só musicalmente, também na relação descontraída que tem com o palco e com o público, “queixando-se” (na brincadeira, claro) mesmo a certa altura inicial da formalidade da ocasião, sentada ali de lado para nós, “presa” entre o piano e a guitarra, os únicos instrumentos que ia alternando de acordo com o tema tocado, prometendo umas “weird jokes” para aligeirar a aparente seriedade do ambiente. Seriedade que nunca houve verdadeiramente, diga-se, nada para além da solenidade emocional conferida pela música em si. A comunicação de Emma com os presentes não foi de resto constante, mas sim de uma naturalidade desarmante, como se estivessemos todos com ela descontraidamente no café, a atirar um comentário aqui e ali, totalmente em paz com os silêncios ocasionais. Algumas histórias de background sobre «Dancing Man», «Razor’s Edge» ou «Citadel», e uma explicação sobre o porquê de «Return» ser a primeira e «In My Afterlife» a última do álbum – esta, uma conclusão de uma jornada que espelha a nossa própria existência, e ficou verbalizada a esperança que a última linha do tema (“and now we’re free / and now we’re free“) seja uma ilustração fiel da forma como deixamos isto tudo no fim. Que sejamos livres, finalmente.
Como já se terá percebido, o grosso da performance consistiu então do recente e estarrecedor «Engine Of Hell» a ser interpretado na íntegra, sem sequer haver subterfúgios como aquela estranha necessidade que alguns têm de baralhar a ordem dos temas do álbum só para ser diferente ao vivo. Vou-vos tocar este álbum, avisa Emma no princípio, e toca, e é isso. E não, não foi “como estar a ouvir o álbum”, essa expressão meio dúbia que às vezes é usada como elogio, particularmente em meandros de música mais cirurgicamente exacta, para enaltecer a precisão de determinada actuação. Claro que, neste caso, não é como estar a ouvir o álbum. Como o concerto de hoje na Casa da Música, no Porto, e o de amanhã, na Igreja da Misericórdia em Leiria, mesmo que se toquem exactamente os mesmos temas, também não serão. E não é por causa de a Emma achar que “estraga” temas porque não consegue reproduzir as melodias exactas do original (como lhe aconteceu numa digressão anterior em que perdeu a voz, e diz que foi um desastre e até quis deixar uma canção de parte uns tempos), não, é mesmo porque por mais que sejam repetidos, a carga sentimental parece estar sempre ali, à flor da pele, e Emma não combate isso. Há sempre uma vulnerabilidade e uma espontaneidade que são inerentes, que fazem elas parte desta música tanto quanto as próprias notas e os instrumentos que as produzem.
Usa-se muito, no nosso meio da música pesada/alternativa/metal, quando há alguma coisa extra-“nossos” géneros de que gostamos e que nos faz sentir algo forte, a imagem de que “é tão ou mais pesado que qualquer banda de death metal!”, ou algo desse género. E sim, isso pode de facto ajudar a descrever determinados artistas, mas não tem que ser por aí que temos que gostar das coisas. A ideia de que algo tem que ser “pesado”, seja de que forma for, para conseguirmos apreciar, é uma falácia desnecessária. Sim, há um “peso” emocional inegável, uma toada sombria, na música de Emma Ruth Rundle, e em particular no minimalismo austero de «Engine Of Hell», mas o resultado, quando posto em palco e contextualizado nesta toada suavemente conversacional que ela lhe confere, não pode ser descrito como pesado. Antes pelo contrário, é como se o repetir desta austeridade que ficou imortalizada em disco (discos que, diga-se a título de curiosidade, “voaram” da banca de merch a uma velocidade impressionante) num contexto diferente, mais social, transforme estas canções mais nisso mesmo, em canções, do que em confessionais solitários catárticos, ambiente que foi a sua génese. É quase terapêutico, tanto para nós como, imaginamos, para a própria.
E pronto, terminada «In My Afterlife», lá atira a Emma com um sorriso que foi isto o álbum, como se tivesse sido coisinha pouca. E como se não bastasse, toma lá uma antiga para rematar, que foi o tema-título (e tema de abertura também) do emblemático «Marked For Death», que continua a ter o impacto que já bem conhecemos. Podia ter acabado aí e já ninguém teria o direito de exigir mais, mas uma plateia inteira de pé em efusivos e infindáveis aplausos trouxe Emma de volta ao palco para um encore relativamente curto, mas magnífico. Como que exemplificando a relação especial que já afirmou ter com o nosso país – se três datas por cá a abrir a digressão não o dissessem implicitamente -, valorizando as amizades que já fez por cá, dedicou «Living With The Black Dog» à talentosa tatuadora Bela Hilário (que os mais atentos terão visto a aplicar a sua arte na pele de Emma no dia anterior, caso sigam a norte-americana nas suas redes sociais), e agradeceu aos demais portugueses que lhe são mais próximos, como o André Mendes da Amplificasom ou a fotógrafa Vera Marmelo, autora das belas imagens que acompanham este texto. A concluir, o 11.º e último (“agora a sério”) tema interpretado foi «Pump Organ Song», redutoramente descrito como “um b-side do álbum”, que se pode encontrar no mais recente EP «Orpheus Looking Back» e que, mesmo não tendo feito parte do cut original, tem, como todas as outras, aquela marca indelével que só a Emma Ruth Rundle consegue aplicar.
Uma artista maior, como já lhe chamámos ali atrás. E parece ser, sem exagero, o melhor termo para a situarmos na linha temporal da música contemporânea. Com (tudo referências descritivas, e nunca comparações, note-se) a fluência melódica natural de uma Joni Mitchell, a camaleónica simbiose vocal/instrumental de uma Tori Amos, a sensibilidade sussurrada de uma Vashti Bunyan, e o aventureirismo experimental de uma PJ Harvey, o que mais lhe havíamos de chamar?
FOTOS: Vera Marmelo