Depois de «God Is Data», o primeiro álbum dos PINTURAS NEGRAS, de 2016, o trio surge agora com um disco ainda mais estranho e ousado. «Bestia: An Exercise In Cowardice And The Evil Within», assim se chama o trabalho para 2022, foi gravado já em 2017, no Stone Sound Studio em Rebordosa. Este registo “dá seguimento à filosofia experimental do projecto”, segundo os póprios. Ideia e filosofia, começaram a formar-se no Porto, em 2013. Inicialmente, as ideias partilhadas assumiram a forma de maquetas que traduziam o desejo de percorrerem sonoridades menos visitadas pelos músicos nos seus outros projetos. Brincadeiras musicais, pode mesmo afirmar-se. As “brincadeiras” cristalizaram-se pela primeira vez em «God Is Data». Ricardo Pinto, Marcelo Aires e André Lourenço formam os PINTURAS NEGRAS; entre eles há música, muita. E ideias. Bastantes. Segundo Ricardo, os músicos conheceram-se “na ESMAE, Porto, enquanto concluíamos, entre os três, o grosso do cardápio de licenciaturas em música daquela escola. Pinturas Negras começou algures em 2013 quando mostrei ao André e ao Marcelo um conjunto de instrumentais que compus e maquetizei em DAW com baterias programadas. Nesse ano estreava «Madalena», um espectáculo do Ensemble – Sociedade de Actores com banda-sonora criada e tocada em cena por mim, guitarra de 8 cordas, e pelo Marcelo, na bateria. Consequentemente, aqueles climas musicais pairavam nas nossas cabeças há vários meses. À medida que o André foi mostrando os primeiros rascunhos de voz e letras, fomos decidindo ser uma banda e gravar um álbum”.
Pega-se no disco e «House Of Fabric» pode trazer, preguiçosamente, os TOOL à memória, como muitos outros temas, aliás. A ideia, no entanto, rapidamente desvanece e, com a entrada da voz, entra-se entre o exercício jazzístico e o new age. Soará estranho? Perfeitamente. Agora, é um estranho agradável, que cativa quem procura o experimentalismo e fora da caixa. Aqui não será estranho referir, por exemplo, um Les Claypool como influenciador. Para Ricardo, “Pinturas Negras é rock/metal contemporâneo, progressivo, dramático, de fusão, com laivos de banda-desenhada, não normativo, orelhudo-desconcertante, poliglota q.b. e com uma certa tendência”. Agora é André que assume as influências, “Acima de tudo, as nossas influências são muitas, dentro e fora do metal; por exemplo, Mr. Bungle, Massive Attack, Korn, Deftones, Tool, John Zorn / Moonchild, Gojira, Karnivool, Slipknot, Mastodon, Neurosis, Opeth, Puscifer, System of a Down, Leprous, Meshuggah, Igorrr, Primus”. Diversidade, riqueza sonora e qualidade, entre as referências. Em «Bestia: An Exercise In Cowardice And The Evil Within» há saxofones, improvisação, um groove de baixo e uma bateria que “brinca na areia”. Também há muito experimentalismo. Um trabalho que tem tudo aquilo que leva a ser metido no grande saco do progressivo. Depois de arrumado, leva-se com a voz singular de André Lourenço. Este tanto soa próximo de Einar Solberg como de Joel Ekelöf, mas numa «Hatephase» soa frenético e desesperado, revelando-se um verdadeiro camaleão. Mesmo assim, também os restantes elementos colocam aqui e ali a sua voz. Ricardo Pinto entrega-se também à guitarra, baixo, teclados e percussão. Marcelo Aires, por seu lado, percorre a bateria e percussão. Destes três, o último será o mais reconhecido, pois são inúmeras as bandas com que colaborou, em estúdio ou ao vivo. Na cena nacional, temos HOLOCAUSTO CANIBAL, SULLEN, COLOSSO, OBLIQUE RAIN ou AXIS. NORUNDA, CRISIX, apenas em concerto, BASEMENT TORTURE KILLINGS ou BLOODHUNTER são outros dos nomes nomes com quem também colaborou, mas fora de portas.
As dez faixas do álbum são percorridas por “uma narrativa fluida ligada a episódios sonoros bastante distintos que remetem para o metal alternativo, o noise ou o industrial”. Lançado a 17 de Março de 2022, o disco teve como single «Lord Of Rats». Para muitos, o disco poderá soar pouco acessível, mas para Ricardo Pinto, “este álbum é até bastante acessível, pelo menos no prisma da diversidade musical que ouvimos e que compomos no nosso dia-a-dia. Não obstante, temos noção da invulgaridade de algumas opções. É propositado. É fruto da ânsia de ouvir uma música que ainda não encontrámos e que, por isso, temos de ser nós a fazê-la”. O vocalista André Lourenço segue a mesma linha de pensamento e, para ele, “apesar da complexidade musical de algumas faixas, o processo de criação de letras e linhas vocais acaba por ser bastante mais instintivo do que em outros projectos: estabelecer primeiro os ambientes vocais e depois ir esculpindo, por alguma tentativa e muito erro, as vozes mais definitivas. Excepto a «House Of Fabric», essa foi difícil”. Quanto à complexidade do título, segundo o vocalista, Bestia é “uma das personagens que mais definida que tenho de todo o imaginário da banda, mas que só existe a sério na minha cabeça, convenhamos. Simboliza a atracção pelo que está um pouco mais além do que vemos de forma clara”. Para ele, “essa força acaba por ser um dos grandes motores da nossa existência enquanto banda, o tentar puxar pelos limites do que conseguimos fazer resultar, quase sempre sem termos um resultado completamente previsto em mente”. Quanto ao subtítulo, este “reflecte algo que é ou devia ser consequência natural de querer ir mais além. Quanto mais nos estendemos, musicalmente ou de outra forma, mais temos também que nos recolher e vasculhar o que temos cá dentro”. Numa nota aparte, o vocalista refere ainda que não se recorda ao certo “quando é que o título passou de «PN#2» para cristalizar em algo tão longo”.
Ainda segundo André, “o processo criativo presta-se à criação de música bastante densa a nível de ideias. Em virtude de residirmos em países diferentes, quase todo o álbum foi feito via computador até entrarmos no estúdio. É uma forma de trabalhar que requer muita confiança uns nos outros, ao mesmo tempo que pede um ritmo de trabalho menos intenso e colectivo. O resultado acaba por advir de uma sobreposição de camadas musicais, mais do que uma ideia central desenvolvida pelo grupo”. A complexidade não é só sonora, é também de ideias. “O nosso próximo projecto, agora que lançámos o álbum, é o de levar a palco um espectáculo encenado baseado em algumas músicas dos nossos dois discos”, explica o vocalista. É o projecto “A Night in the Belly Of The Beast”, já em desenvolvimento. “Sempre houve uma narrativa subentendida em Pinturas Negras. Creio que gostamos os três de criar as nossas histórias e de as sobrepor umas às outras e que isso está patente no resultado musical. Ao mesmo tempo, eu estou activo como intérprete de música clássica contemporânea e acabo por trabalhar com espectáculos encenados e/ou coreografados, o Ricardo está ligado ao teatro desde que gatinha e o Marcelo tem também o lado da percussão erudita que tanto vive do movimento. Acaba por ser um próximo passo lógico, ainda que vá ser um grande desafio”. Para Ricardo, este projecto “vai ser a nossa ideia de ‘banda a tocar a sua música ao vivo’. Será um espectáculo multidisciplinar, com músicos, actores e bailarinos, encenado, coreografado, cenografado, com desenho de luz, desenho de som, vídeo, e o que mais se justificar na criação de uma experiência que queremos invulgar, intensa, inebriante e para levar em digressão”. Arrojados e complexos, assim são os PINTURAS NEGRAS. «Bestia: An Exercise In Cowardice And The Evil Within» é um disco para escutar, estranhar e entranhar.