O black metal é bué cenas, para parafrasear a conhecida expressão, mas sem dúvida que a “cena” que mais tem dado que falar em Portugal nos últimos anos tem sido a da vertente mais crua e mais cavernosa do género. O minimalismo estético e musical, a agressividade odiosa e muitas vezes o anonimato dos seus membros têm sido características comuns a inúmeros nomes que têm levado o BM nacional aos quatro cantos do mundo, mas isso não quer dizer que não haja também outros estilos a serem explorados. Entram então os Benthik Zone, que apesar de não serem ainda um nome muito badalado, já vão no seu terceiro longa-duração, «Εἴδωλον», uma discografia à qual se juntam ainda três EPs, num percurso iniciado no Porto em 2016. Trata-se de um duo, que também enveredou ao princípio pela grandiloquência dos nomes fictícios, mas que com o tempo se “reduziram” a A. Leão e F. Braga, uma simplificação que está em proporção inversa à ambição temática – os Benthik Zone, mais do que para o inferno ou qualquer cave escura como muitos dos seus semi-pares estilísticos, têm as atenções firmemente viradas para a imensidão quase infinita e desconhecida tanto dos oceanos, como do cosmos, usando a vastidão das águas e do universo como ferramentas de introspecção e filosofia nas suas letras e conceitos. “Desde os primeiros anos da nossa adolescência que acreditámos que a música poderia ser um veículo para a congregação/simbiose entre diversas expressões artísticas, e estas influências poderiam vir de autores diversos e serem referências muito distintas, no campo da arte e não só,” explica A. Leão – ele que trata de voz e letras, didgeridoo e berimbau, para além do aspecto visual dos álbuns – ao recordar os primeiros passos que deram origem à formação desta entidade. “Neste processo, de constante negociação e discussão saudável entre pares, decidimos criar uma banda com a Maria Moura, onde tivemos a oportunidade de dar destaque ao exercício da catarse e purga dos nossos alter-egos, utilizando o paradigma do black metal para balizar a expansão da nossa arquitectura sonora. O mais curioso sobre esta colaboração foi que ensaiávamos numa pequena sala na casa da Maria, que não tinha espaço para uma pessoa se movimentar ou mesmo um kit de bateria adequado. Na altura, o F. Braga era o baterista e eu o vocalista, enquanto a Maria destilava uns riffs sublimes e beatíficos que nos encorajavam a andar em frente. Mais tarde, a banda incluiu mais dois membros, Ricardo Sampaio como baixista (agora a tocar guitarra nos Madmess) e João Miguel como guitarrista principal, sob pena de uma incompletude do projecto em termos sonoros. Nesta altura, embora nos divertíssemos bastante a fazê-lo, os Druser perderam lentamente a sua raison d’être e como consequência o desânimo e as divergências aumentaram drasticamente, até que a banda se “despernou”, metamorfoseando-se no que são hoje os Benthik Zone. Não obstante, antes dessa transição vertiginosa, o F. desenvolveu um projeto a solo intitulado Afogado, tendo este exercício constituído uma fase embrionária e espoletado o projecto atual mais robusto, conjuntamente com o estudo e interesse sobre a temática do oceano que também já tinha surgido. Neste contexto e em resultado do que tinha sido aprendido, o F. convidou-me a iniciar os Benthik Zone com ele.“ Com a biografia actualizada, o músico dá-nos ainda uma preciosa achega em relação ao nome da banda: “Surgiu naturalmente à medida que o nosso interesse pelas criaturas do mar profundo ia aumentando e conforme se ia desenrolando a nossa investigação sobre este tema. Todo este pequeno/grande universo transformou-se num território por excelência para ir beber em termos conceptuais. Um território que nos permitiu imitar a atmosfera opressiva, fantasmagórica e cavernosa que pertence apenas ao seu ambiente peculiar de profundeza marinha, dando-nos assim um leitmotiv especial para trabalhar. Nesta linha de raciocínio, o F. descobriu o termo científico “zona bentónica” que faz uma referência direta à zona ecológica mais baixa de um corpo de água, ‘estabelecendo assim uma ponte metafórica com a zona ontológica mais baixa do ser humano.’ Palavras dele.”
Apesar de a produtividade parecer um bom sinal no que diz respeito à criatividade da banda, A. Leão questiona o passado editorial dos Benthik Zone, atribuindo ao novo «Εἴδωλον» uma importância maior em termos de critério e qualidade. “As narrativas sonoras que disponibilizamos podiam ter sido melhor consubstanciados e analisadas (até ao tutano), com o objetivo de o aperfeiçoar e embelezar,” considera. “Até ao «Εἴδωλον» houve, portanto, algum descuido e também uma certa inocência relativamente à asserção crítica dos registos por vezes precários de som. Olhando retrospectivamente esse registo de lançamentos anteriores, percebemos que ele moldou a nossa identidade no bom sentido, trazendo diversidade comparativamente ao último álbum que consideramos ter tido um salto qualitativo enorme em termos de produção e masterização, graças também ao músico convidado Guilherme Correia.” F. Braga, por seu turno – ele que está creditado pela composição, guitarras, baixo, backing vocals, para além da mistura do álbum e autoria do logo e capa do álbum -, acrescenta ainda que este projecto é “a nossa prioridade musical, porque parte da vida dos seus membros de uma forma integral e demonstra acima de tudo o delírio das nossas existências. Benthik Zone é completamente transparente ao espelhar tudo o que somos, imaginamos, vivemos, é o projecto que mais liberdade nos dá para explorar diversos meios e formas de expressão, sem que haja uma força externa (do mundo físico) que nos condicione ou nos oriente nessa viagem.”
De facto, ainda que «Via Cosmicam Ad Europam Ab Inferis Gelid» e «Omni Quantum Univers» não sejam, de todo, “de deitar fora”, e mereçam uma visita mesmo que retrospectiva, há neste novo trabalho todo um ar de “chegada”, como se tivessem finalmente atingido o ponto de rebuçado pretendido desde o início. Composto por sete temas que fluem como um só, com títulos (e letras) em português que constituem, quando juntos, uma frase completa, há uma coesão notável que, no entanto, não invalida a diversidade entre as várias peças. Mantendo-se geralmente debaixo da “bandeira” do black metal, é um álbum que também entende que essa bandeira, quando se quer, pode ser muito abrangente. Aliás, uma característica que já vem de anteriores colaborações dos músicos noutros projectos, que não serão difíceis de identificar para os leitores mais atentos. “É certo que partimos dessa categoria musical como referência e fundação, contudo, o facto de ela possivelmente se apresentar como estanque ou insuficiente quando utilizada para representar a nossa música, pode apenas vir a revelar que o termo em questão sofreu, e tem vindo a sofrer, tentativas visíveis de conservação daquela que foi a energia que o consolidou (segunda vaga escandinava),” reflecte F. Braga. “Desde então, a nosso ver, a categoria black metal tanto se demonstrou flexível e aglutinadora, como também se demonstra rígida e não-maleável. Este espectro de muita ou pouca flexibilidade é, naturalmente, subjectivo na sua interpretação. Prezamos tanto os projectos que se inserem numa condição mais tradicional, como aqueles que dela se distanciam. Benthik Zone é para nós um equilíbrio entre a vanguarda e a tradição. Parte desde o nosso primeiro lançamento a aspiração de navegar águas desconhecidas aplicando a sabedoria antiga, assim, a nossa base de inspirações tanto surge como uma estranha silhueta no horizonte distante para o qual nos direccionamos, como nos mapas traçados e instrumentos de navegação utilizados por quem já ali passou.”
Em relação à temática, também aí tem havido uma evolução, como se os Benthik Zone fossem eles próprios uma criatura viva e em pleno desenvolvimento, aumentando os seus horizontes à medida que vai crescendo. “Como já foi referido antes, tudo começou com um interesse pelo mundo subaquático onde a luz é escassa e a pressão avassaladora. O exercício com o nosso primeiro álbum, «Alienum A Daemonum Inferni Squali» [NR: que é referido como EP em alguns sítios, daí a contagem que fizemos anteriormente], por exemplo, foi o de nos deixar imergir nesse mundo sobrenatural, ficcionando sobre criaturas tais como tubarões pré-históricos, recriando uma fauna aquática de intermitentes e múltiplos focos de bioluminescência, provenientes de cada ser vivo lá habitante. Já aquando do processo de criação e lançamento do «Cyclum Vitam D’Aqua Pollutio», houve uma sensibilização que cresceu inesperadamente em nós relativamente às questões ambientais, nomeadamente a poluição e as catástrofes naturais, mas acima de tudo a forma como o Homem começou a interferir com os ciclos da natureza desde a revolução industrial. Mais tarde, com o «Via Cosmicam ad Europam ab Gelid Inferis», numa altura em que ouvíamos muito Battle Dagorath, Darkspace e Mare Cognitum, projectos que andam em torno do conceito do Cosmos e das atmosferas estelares, decidimos enveredar por essa linha temática. Ficámos fascinados com uma imagem telescópica da lua Europa e no seguimento dessa curiosidade crescente, começamos a investigar mais sobre a sua atmosfera e sobre a possibilidade de vida nesse ambiente aquático hostil. Então, apercebemo-nos que era um terreno fértil para criarmos a nossa odisseia de ficção científica. E, depois de termos essa base, deixamo-nos influenciar por conceitos como a transmigração ou a metempsicose, adotados por Pitágoras ou Empédocles, com via a descrever a migração da alma e a lembrança das vidas passadas. Em «Causa Modicum Temporis Spatium», fui beber muito ao estilo de escrita de Nietzsche na Gaia Ciência para a construção da parte lírica, baseando-me em termos conceptuais nos passeios que fiz por uma aldeia na Serra da Estrela onde procurei meditar sobre as temáticas da morte e do esquecimento. Curiosamente a sonoridade deste EP contrasta com o conteúdo lírico mais focado na experiência emocional pessoal, quando o resto mimetiza uma nova viagem cósmica, onde o tempo e o espaço são conceitos a realçar. Foi a partir do «Omni Quantum Univers» que começamos a interessar-nos mais pelo universo da física quântica, o que nos levou à teoria das cordas que faz referência a uma unidade de matéria ainda mais ínfima do que a do átomo, electrão, etc. Esta corda/fio que vibra é, portanto, a unidade mais elementar com que os ramos da física se deparam nas suas equações. Foi por esta unidade que começamos a intuir a complexidade e o infinito do real, prosseguindo com representações abstratas que vão desde o micro ao macrocosmo, das partículas, passando pela escala humana e terminando com a imensidão do Apeiron.” Chegados finalmente ao presente, A. Leão explica que “o mais recente álbum teve como tema central a mitologia, nomeadamente histórias mitológicas da antiguidade clássica com enfoque em alguns dos seus temas como a metamorfose. Foi essencial ler as Metamorphoseon de Ovídio, uma obra que é um poderoso repositório de contos mitológicos que combina na sua estrutura e texto a tradição grega e romana e que foi uma importante fonte de referências.” F. Braga adiciona que “através de uma reflexão sobre o nosso percurso, concluo que estes interesses naturalmente se encadearam uns nos outros, e essa relação é bem visível nesta narrativa desde 2016. Porém também notei que a nossa obsessão com o elemento da água é transversal no nosso imaginário. Foi a partir do «Cyclum Vitam d’Aqua Polutio» que me apercebi que estava a brotar à minha frente um potencial imenso de desenvolver uma antologia, e, por curiosidade, não antes disto. A partir daí, o projecto ganhou cada vez mais força na sua autonomia/vida e actualmente somos nós os seus ‘fiéis servos’.”
A certa altura da conversa, debatendo a importância do novo álbum, F. Braga chega mesmo a dizer que “chegamos por vezes a considerar este o nosso primeiro verdadeiro lançamento, onde após toda a exploração que fizemos no passado finalmente nos sentimos mais capazes a consolidar a estética, agora amadurecida, que temos vindo a desenvolver,” o que não é algo que se considere de ânimo leve, certamente, mas que serve para perceber o alcance estratosférico desta obra. “É um álbum que celebra a beleza da metamorfose, do hibridismo e que fala sobre o voyeurismo, narcisismo, magia e o sobrenatural,” atira A. Leão. É também uma prova de que a língua portuguesa não só pode ser um veículo tremendo para a verbalização da música extrema, mas como pode também ter um alcance espiritual muito além do alcance de muitos grupos que usam, tantas vezes de forma limitada, o inglês como segunda língua. “Termos escrito os títulos em latim, durante a antologia, revela o nosso tremendo fascínio pela raiz da nossa língua materna,” explica F. Braga. “Termos escrito grande parte das letras em português apenas foi o que fez mais sentido para nós quando nos deparámos com grau de especificidade que as nossas temáticas pediam. Assim, o português permitiu que caminhássemos por limites mais abrangentes da nossa percepção destes temas dando-lhes a sua devida atenção. Sentimos, sim, que nos demarca, e, quando no single «M11thD» escrevemos em inglês recebemos impressões de um ouvinte holandês na onda de: ‘deviam continuar a escrever em português que eu não percebo nada, e assim, a música soa mais hermética e encriptada, para além de que a língua portuguesa é pouco ouvida e pouco reconhecida na sua beleza.’ Já nessa altura estávamos a perceber que no que viríamos a fazer, a língua portuguesa seria quem nos guiaria.”
Resta agora degustar a profundidade requintada de «Εἴδωλον», com a promessa de que esta jornada ainda agora começou… sendo mesmo possível que uma das próximas paragens seja, finalmente, num palco que seja merecedor de os receber. “Planeamos dar esse passo agora,” confirma F. Braga, uma notificação que aqui fica ao cuidado de todos os promotores da nossa cena. “E sim, aos poucos vamo-nos aproximando da pesquisa sobre aquele que será o próximo mundo a explorar.”