E pronto, um dos últimos gigantes que, depois de dois anos de dormência, faltava acordar para voltar a calcorrear os percursos da música pesada e alternativa nacional, já aí está, recuperado, cheio de música, gente, copos fresquinhos, banhos no rio, pó, gelados e dores nos joelhos, nas costas e no pescoço – tudo o que faz parte do EDP Vilar de Mouros, e que tivemos a rodos durante três dias. Do primeiro e do segundo já vos falámos, e para o fim ficou a maior enchente desta edição de retoma do histórico festival minhoto, com Iggy Pop e Bauhaus como dupla justificação óbvia. Sem serem propriamente novidades a nível nacional (oitavo concerto em Portugal do primeiro, e segundo em Vilar de Mouros; e quinto dos britânicos, que ainda assim já não nos visitavam desde 2006), são nomes de influência universal para cativarem sempre a imaginação de largas facções de público quando os seus caminhos se cruzam com os nossos.
Começando, contudo, pelo princípio, e fazendo jus ao habitual, foi uma banda portuguesa emergente que teve a honra de abrir o palco de Vilar de Mouros neste dia de encerramento. Aliás, não fossem os Non Talkers no segundo dia, e o habitual até se poderia especificar mais com “algarvia” em vez de “portuguesa”, já que tal como os The Black Teddys vieram de Olhão no primeiro dia, também os THE MIRANDAS percorreram longitudinalmente o país inteiro, desde Faro, para chegarem a este ilustre cenário. E mais uma vez com muito pouca gente a assistir. Compreende-se o cansaço e a necessidade de arear a cabeça um bocado, mas convenhamos que já eram sete da tarde, e a malta toda que estava cá fora nos copos podia perfeitamente dar lá um saltinho dentro para ouvir estas bandas, mesmo durante o consumo desses mesmos copos. No caso dos The Mirandas, até se tratou da melhor das três, se considerarmos este mini-campeonato a três, com um rock muito bluesy, muito norte-americano, a tresandar aos 70s em particular, soberbamente debitado por um quinteto cheio de feeling. Destaque natural para a multifacetada frontwoman, Inês Miranda, que alterna entre teclados e guitarra enquanto fornece a sua voz encorpada e confiante aos gingões temas, alguns novos e outros do EP de estreia de 2021, «All Those Yesterdays». Ainda por cima num dia que tinha também no alinhamento The Legendary Tigerman, fez todo o sentido começar assim.
Aliás, o senhor Furtado, homem-tigre, era suposto actuar logo de seguida de acordo com o plano original, o que teria sido fantástico, mas com o cancelamento de quase última hora dos Wolfmother, foi bumped um lugarzinho para a frente no cartaz, tendo entrado lá para o meio os BLIND ZERO. Uma escolha meio surpreendente, verdade seja dita – o substituto dos australianos acabou mesmo por ser o Tigerman que “já lá estava” (e na humilde opinião deste escriba, até é um upgrade para aquele slot), vindo a banda portuense, que à terceira aparição no festival já é praticamente um nome “da casa”, mais para tapar esse buraquinho de segunda-banda-do-dia como aparente último recurso do que outra coisa. Não se pode dizer que tenha corrido mal – numa prestação competente, ainda que sem grandes rasgos, lá deu para uma espreitadela a alguns temas novos do vindouro «Courage And Doom» e relembrar outros já com alguma história no percurso do quarteto liderado por Miguel Guedes e Vasco Espinheira, mas como foi notório pela súbita enchente nas zonas de alimentação, a familiaridade também fez com que muitos prescindissem de ir para a frente do palco.
Já o THE LEGENDARY TIGERMAN assegura por defeito que ninguém arrede pé dali durante todo o concerto, senão ainda correm o risco de perder alguma coisa de que se vão arrepender. Há todo um elemento de “perigo”, de energia electrizante – de rock’n’roll, vá! – na postura ao vivo de Paulo Furtado e sua banda, que desta vez até culminou num final caótico (mais que o costume) com a habitual «21st Century Rock ‘n’ Roll». Irritado com um cabo que não o deixava ir mais longe, e certamente ainda a necessitar de alguma catarse no rescaldo da morte de um amigo próximo (o promotor e DJ Alfredo Macedo, que havia homenageado com «Fix Of Rock ‘n’ Roll» – “Esta é para ele. Isto é tudo para ele.“), o Tigerman foi gritar para o meio do público, desafiou seguranças, fez atrasar o concerto seguinte (de um tal de Iggy qualquer coisa), “pediu emprestada” uma máquina fotográfica que ousou estar no caminho de volta para o palco depois da incursão pelo público, atirou uma guitarra pelo palco afora, enfim, fez um estardalhaço daqueles, perante o olhar meio surpreendido dos seus próprios colegas de banda, nitidamente sem saber bem o que ia dar aquela mercurial situação. Foi rock’n’roll, senhores! Não se pede perigo e imprevisibilidade para depois querermos continuar na nossa bolhazinha de segurança na mesma, pois não? E que esse momento altamente emocional também não ofusque tudo o que se passou antes. Desde a mensagem constantemente transmitida, seja subliminar ou mesmo explicitamente (“há duas coisas fundamentais na puta da vida: amigos… e o amor, foda-se!“), até aos malhões debitados que por momentos nos fizeram pensar que o pó que nos cagava as calças e nos entrava pelo nariz a dentro era mais do Arizona do que dos arredores de Caminha, tudo neste concerto transcendeu aquele conceito meio redutor que aplicamos às vezes, da bandinha portuguesa para consumo exclusivamente nacional – a verdade é que o Tigerman está ao nível de qualquer forasteiro que nos visite com posição de destaque no cartaz, e deu gosto constatar essa grandeza num dos palcos mais importantes cá do burgo. Grandes momentos a fugir à norma, para além do final apoteótico, a «The Saddest Thing To Say», durante a qual até podíamos fechar os olhos e imaginar que a grande Lisa Kekaula dos The Bellrays estava mesmo ali, ou a versão de «These Boots Are Made For Walkin’», canção originalmente escrita pelo lendário Lee Hazlewood para a não menos grande Nancy Sinatra e que coube à baterista Catarina Henriques interpretar. Resumindo – fez-se rock’n’roll. À grande e à portuguesa.
…e o rock’n’roll à portuguesa foi o preâmbulo perfeito para o rock’n’roll à americana que se seguiu. Antes de entrarmos em detalhes, vale a pena considerar um facto prévio. O cavalheiro que se chama James Newell Osterberg Jr. e que o mundo conhece bem melhor como IGGY POP nasceu no dia 21 de Abril de 1947. Tem, à data deste concerto, 75 anos de idade. Numa altura da vida em que os sortudos de entre nós que lá chegam querem (ou precisam) é sopas e descanso, e tanta saúde quanto possível, este senhor veio da solarenga Florida onde reside, na companhia da sua esposa e de uma catatua hilariante (o Biggy Pop, e se não o conhecem, vão pesquisar que vale a pena), para se despir, como sempre fez ao longo da sua carreira e continua a fazer independentemente das marcas de guerra que o corpo apresente, à frente de milhares de pessoas, numa pequena aldeia no norte de Portugal, e cantar-lhes uns malhões que toda a gente conhece e adora. Esta ligação umbilical ao rock é o que define o Iggy Pop mais do que qualquer outra coisa, esta fome, esta vontade animalesca, que tal como aconteceu, por exemplo, com o Lemmy, vai certamente continuar a “obrigá-lo” a fazer isto tudo até ao dia em que a vida não o deixar mais. Como é natural, tal como já não se espera que o Cristiano ou o Messi marquem 60 golos por época e decidam os jogos quase todos nesta fase das suas carreiras, também o Iggy Pop, de aparência física bastante mais débil do que das últimas vezes que o vimos, merece algum “desconto”. Longe vão os dias daqueles concertos míticos com que nos visitou nos 80s e nos 90s, mas mesmo assim, não é preciso fazer favor condescendente nenhum para apreciar o que continua a ser um grande espectáculo. “I’m an old boy now, and I know I have to die, but before I do, I will take you on a death trip!“, atira ele antes, obviamente, da «Death Trip» (uma das várias do tempo dos The Stooges, ainda, esta do «Raw Power»), e isso quase que resume tudo. Com noção do que ainda pode ou do que já não pode fazer, lá se vai agitando em dancinhas oblíquas, ou recuperando com classe de um pequeno tropeção, e ajudando a manter intacta a magia que a brutalmente terna «I Wanna Be Your Dog» ou a eternamente explosiva «Search And Destroy» vão ter sempre. Se o rock morreu, como algumas alminhas continuam a pregar quando precisam de um bocado de atenção, ninguém avisou nem o Tigerman nem o Iggy Pop. E ainda bem.
Isto tudo, e ainda faltava o melhor concerto da noite, e eventualmente de todo o festival. Guardadinhos para o fim, os BAUHAUS, que também já não são nenhumas crianças, diga-se de passagem (todos com 65 anos à excepção do “miúdo” baterista, o Kevin Haskins, que tem 62), na última data de uma digressão europeia que tem sido um sucesso estrondoso, mostraram de forma cabal que merecem muito mais reconhecimento do que o que lhes é usualmente atribuído, eles que são normalmente reduzidos, tipicamente por imprensa com gritante falta de referências, a pioneiros do gótico enquanto género musical, e eles que são tão mais do que só isso. É recordar, por exemplo, que um tal de Michael Gira chegou a abrir para os Bauhaus com a sua banda pré-Swans, Circus Mort (um choque de grandes personalidades que parece que ia descambando, segundo os relatos da altura), ou então ir perguntar àquele senhor que parece que escreve umas coisas giras, o Neil Gaiman, em quem é que se foi inspirar para a figura do Sandman, agora que esse até está na berlinda outra vez. Ou mais facilmente, a qualquer um dos presentes ontem à noite, parte da numerosa multidão que assistiu estarrecida sem arredar pé, uma trupe esplendorosamente eclética tanto em gostos musicais como idades que se uniu a uma só voz – a do Peter Murphy, claro. Apesar do seu percurso errático – sim, que isto não é gente de feitio fácil -, há mais que laivos de post-punk, noise rock, industrial e demais experimentalismo sem nome estanque na música dos Bauhaus, e conseguir dar um concerto com uma selecção primorosa de alguns dos seus melhores momentos como foi esta actuação em Vilar de Mouros, da forma irrepreensível, inspiradora e de impacto duradouro que foi, só está ao alcance de muito poucos. Figura central e instantaneamente hipnótica (e que com as características físicas actuais, dá vontade de ir buscar o John Malkovich para o interpretar num hipotético biopic), Murphy assume o controlo das operações imediatamente desde o início, imponente com a sua bengala/ceptro, lançando-se numa «Rosegarden Funeral Of Sores» de abertura que já foi do mítico John Cale mas que agora, desculpem lá, os Bauhaus já possuíram por completo. Perante o olhar penetrante de Murphy, de intensidade fora do vulgar, seguem-se os ritmos lancinantes de «Double Dare», e a no wave cortante de «In The Flat Field», ambas do álbum de estreia de 1980 do qual esta última é o tema-título. Um trio de abertura incrível que dá o mote para o resto da actuação, uma hora e meia de luxo que passou a correr, durante a qual a banda se permite a largar as emblemáticas «She’s In Parties» (com Murphy armado de uma melodica) e, acima de tudo, «Bela Lugosi’s Dead», lá para o meio do setlist, como se fossem outras quaisquer. A questão é que os Bauhaus não têm outras quaisquer, todas são essenciais, incluindo as “possuídas”. É para o encore que ficam então as outras covers, começando com uma do Iggy Pop que tínhamos ouvido momentos antes pelo próprio, «Sister Midnight», supostamente em agradecimento pelo veterano norte-americano ter dado um beijinho na mão do baixista David J depois de ele se ter magoado. “He kissed it and made it better“, e acreditamos que sim. Daí até à aclamação final com «Ziggy Stardust» de vocês-sabem-quem, com o inigualável guitarrista Daniel Ash em grande forma mais uma vez, foi um saltinho, e parecia que tinham sido cinco minutos. Ou cinco décadas, pela densidade de significado e riqueza musical que esta hora e meia teve. Depende da perspectiva. O que não é discutível é que foi o melhor final que se poderia ter imaginado para o EDP Vilar de Mouros de 2022. Fasquia bem alta para o ano que vem, vejam lá isso. Até lá!
FOTOS: Estefânia Silva