1966–2025: a voz que comandou a dança industrial. Figura icónica da música electrónica britânica, Douglas J. McCarthy deixa um legado de intensidade, provocação e ritmo visceral.
O grito seco de uma era. Foi assim que muitos descreveram a voz de Douglas McCarthy, o carismático cantor e letrista dos NITZER EBB, que faleceu no dia 11 de junho de 2025, aos 58 anos. A notícia foi avançada pela própria banda nas suas redes sociais: “É com o coração pesado que lamentamos informar que o Douglas McCarthy faleceu esta manhã. Pedimos respeito pelo Douglas, a sua esposa e família neste momento difícil”. A causa da morte não foi divulgada.
Figura essencial no nascimento e consolidação da chamada EBM (electronic body music), McCarthy fez da sua presença em palco — e fora dele — um manifesto sonoro e visual. Com um estilo descrito por si mesmo como “shouting and pointing”, o britânico moldou uma linguagem que transcendia géneros: a sua postura autoritária, a entrega física das performances e a simbiose com as batidas metálicas e sintéticas dos NITZER EBB conquistaram públicos tanto no underground industrial como nas pistas de dança mais vanguardistas, deixando marcas profundas em nomes como Trent Reznor, dos NINE INCH NAILS.
Nascido e criado em Essex, Inglaterra, Douglas cruzou-se com David Gooday aos dez anos de idade. A amizade cimentada na infância levou à fundação dos NITZER EBB em 1982, com os companheiros Bon Harris e Simon Granger. Numa época em que a juventude britânica vivia sob o peso da repressão social e económica, a música do grupo emergia como resposta directa à tensão nas ruas — mineiros em greve, confrontos com a polícia, austeridade. Bon Harris viria mais tarde a explicar: “A imagem totalitária reflectia o tempo austero em que vivíamos, com as greves e os motins”.
Ainda assim, por trás da agressividade estética havia uma pulsação contagiante. Desde os primeiros ensaios, em que percussão era feita com um caixote do lixo de metal batizado de “John”, até à edição do primeiro single, «Isn’t It Funny How Your Body Works», em 1985, McCarthy e os seus colegas cultivaram uma sonoridade dura, espartana, mas estranhamente dançável. Clássicos como «Let Your Body Learn» e «Join In The Chant» tornaram-se hinos nas pistas de dança alternativas e contribuíram para a fusão entre o industrial e a cena acid house britânica.
Atingiram o pico da popularidade com o álbum «That Total Age», de 1987, lançado pela Geffen nos Estados Unidos, após captarem a atenção de Daniel Miller, da Mute Records, e dos DEPECHE MODE, com quem viriam a andar em digressão. A colaboração entre McCarthy e Alan Wilder, membro dos DEPECHE MODE, daria origem ao projecto paralelo Recoil, ampliando a influência de McCarthy para além da sua banda principal.
Após cinco álbuns, os NITZER EBB separaram-se em 1995. McCarthy embarcou então num percurso pessoal de reinvenção: mudou-se para Los Angeles, depois para Detroit e, mais tarde, de volta ao Reino Unido. Em Cambridge, estudou design e cinema, e chegou a trabalhar no setor da publicidade — talvez o único campo onde a sua intensidade crua teve de ser suavizada. Mas a música voltou a chamar por ele.
A parceria com o produtor francês Terence Fixmer, sob o nome Fixmer/McCarthy, reintroduziu Douglas ao circuito electrónico com nova vitalidade, preparando o terreno para a aguardada reunião dos NITZER EBB em 2007 e para o lançamento de «Industrial Complex», em 2010. Em 2012, McCarthy editou o seu único álbum a solo, «Kill Your Friends», que trouxe uma abordagem mais melódica, mas sem abandonar a acidez lírica que o caracterizava.
McCarthy sabia que o seu corpo tinha sido palco de muitos excessos e, em Março de 2024, anunciou a sua saída de uma digressão europeia devido a cirrose hepática: “Após anos de abuso de álcool… há mais de dois anos que não bebo, mas a recuperação é um processo longo”, escreveu na altura. Era uma confissão honesta, sem vitimização — à imagem do seu percurso. A sua morte gerou uma vaga de homenagens. A editora Dark Entries, com quem McCarthy colaborou nos últimos anos, descreveu-o como “uma força avassaladora de inovação e visão musical”.
E não é difícil entender porquê. A sua arte desafiava convenções, questionava sistemas e falava ao corpo antes de chegar à mente — talvez fosse precisamente no corpo que a mente se revelava. Como escreveu certa vez o lendário DJ Andrew Weatherall: “O mais perto que me senti de Deus foi a ouvir a «Join In The Chant»”. Talvez a fé de McCarthy fosse essa: um rito físico, eléctrico, onde cada palavra gritada era uma oferenda, cada beat um dogma. Num tempo em que tantos artistas tentam ser tudo para todos, Douglas McCarthy escolheu ser absoluto — mesmo que isso significasse desconforto, confronto, intensidade.