Dezembro é mês de celebração para a banda nacional de funeral doom metal por excelência e, em antecipação ao concerto de amanhã, dia 16 de Dezembro, no RCA Club, em Lisboa, recuperamos aqui a conversa que tivemos com a banda para o nosso/vosso Quadro de Honra.
Após uma pausa sabática de dois anos, os DESIRE estão de volta com uma importante reedição e um concerto. O álbum de estreia «Infinity… A Timeless Journey Through An Emotional Dream» recebe novo lançamento através da Alma Mater Records, editora ligada aos Moonspell. São as mesmas faixas do disco que saiu originalmente em 1996 pela Skyfall Records, remasterizadas em Julho deste ano nos estúdios Poison Apple por Tiago Canadas. Este referencial registo de negritude atmosférica receberá então uma nova vida em CD digipack e em duplo-LP preto, com uma versão limitada em vinil dourado. A capa original é respeitada, mas há um layout renovado por João Diogo Pereira, designer que já colaborou com os Bizarra Locomotiva, Moonspell e também com a LOUD!, entre outros.
Recorde-se que temas como «A Ride In A Dream Crow» ou «The Purest Dreamer» começaram a ser registados nos estúdios Rec ‘n’ Roll com Luís Barros em Julho de 1995, quando a banda tinha apenas a intenção de gravar uma demo-tape, vindo «Infinity…» a tornar-se num clássico de música melancólica pesada a extravasar fronteiras. Para assinalar esta reedição e regresso dos Desire ao activo, o grupo actua no dia 16 de Dezembro no RCA Club, em Lisboa, tendo os Dark Oath como banda convidada. Corvus (ou Tear) como vocalista e Flame como baterista são membros fundadores por trás deste retorno que é incerto
quanto à feitura de um eventual futuro trabalho, sucessor do EP «Crowcifix» de 2009.
Se escrevessem o «Infinity…» actualmente alteravam-lhe alguma coisa ou este é especial exactamente pela forma e timing em que surgiu?
Tear: O «Infinity…», tal como as outras obras dos Desire, será sempre especial, precisamente pela forma e processos pelos quais resultou, marcando profundamente fases e momentos das nossas vidas. Diria, no entanto, que este é um disco mais especial porque foi o primeiro cravar das garras do corvo na nossa carne… feridas que não saram, emoções que perduram, memórias que não se esquecem, morte que deseja vida. Apesar de termos assumido desde a nossa génese o facto de que as nossas músicas seriam sempre obras inacabadas, pelo misto de angústia e ambição de fazer sempre melhor, o «Infinity…» resultou tal qual foi pensado.
Até que ponto acham que ele mudou a face do metal nacional?
Tear: O «Infinity…» foi tão somente o primeiro disco de doom feito em Portugal, tal como nós fomos a primeira banda dentro do estilo a surgir em terras de Camões. Penso que abrimos novos horizontes no panorama que se vivia na altura. Introduzimos uma
sonoridade diferente e, a partir desse momento, todos os seguidores do estilo passaram a ter uma referência com a qual talvez se identificassem, uma vez que retratamos a dor, a melancolia e a nostalgia da alma lusa de uma forma muito sui generis.
Flame: Penso que se tratou de uma lufada de ar fresco. Poderá ter levado o público a ficar mais atento a um determinado tipo de som que, no entanto, já existia fora de portas e levado, inclusive, a angariar um bom número de seguidores para o mesmo.
Actualmente, o «Infinity…» acaba também por ser uma referência quando escrevem?
Flame: Veio a tornar-se em termos nacionais, mas não tanto na nossa forma de compor. Naturalmente que o nível de evolução ao longo dos anos fez com que pudéssemos desenvolver e refinar a fórmula criada neste álbum. Porém, nunca vivemos sob o seu
espectro nem o poderíamos fazer, correndo assim o risco de estagnarmos.
Tear: Faz parte da nossa existência. Terá sempre o seu lugar especial, mas quando nos encontramos em processo de composição nunca pensamos no que fizemos no passado, mas sim no que sentimos no momento e no que queremos fazer no futuro. Contudo, temos sempre a certeza de que as nossas obras que ganharão vida, serão sempre genuínas e honestas. É o exteriorizar das nossas almas, a mais bela e trágica expressão da dor do desejo que se sente e se ouve no crocitar do corvo.
Caso não existissem bandas como My Dying Bride, Candlemass ou Cradle Of Filth, os Desire seriam sempre o que foram em «Infinity…»?
Tear: Sim, porque apesar de ter sempre existido uma grande diversidade de gostos no seio da banda, houve sempre algo muito importante em comum – a convergência de sentimentos e emoções. Mas é obvio que, directa ou indirectamente, tudo acaba por ser
uma influência, tal como as bandas referidas. Posso afirmar que o «Epicus Doomicus Metallicus» dos Candlemass é uma das minhas maiores referências e que, sem dúvida alguma, marcou a minha vida por tão belo, profundo e intemporal que é.
Flame: Sim, penso que não seria muito diferente do resultado final, nem tão pouco soaríamos de outra forma. Não podemos negar as nossas influências ainda que tenhamos conseguido manter-nos sempre algo afastados do que ouvíamos e ouvimos. Os Candlemass sempre foram uma das grandes referências da banda, sobretudo em termos de grandiosidade épica.
Se a sonoridade deste disco já era pioneira em Portugal como terá sido também o impacto para um produtor tão experiente como o Luís Barros? Já agora desvendem-nos quem é o Zé Motor.
Flame: We took Luís Barros by storm! [risos] Foi de facto curioso observar o impacto que conseguimos causar junto dele e da restante equipa dos estúdios Rec’n’Roll. Muita gente não sabe, mas quando entrámos lá a ideia era registar uma demo-tape, e o Luís foi um dos que se mostrou mais inconformado, pois achava que o trabalho final tinha mais potencial para ser editado somente em cassete. Já na altura, ele também achava que estávamos à frente do tempo em termos nacionais e achou-nos totalmente inovadores no «Infinity…». O Zé Motor, cujo verdadeiro nome nunca ficámos a saber, era engenheiro de som e produtor nos estúdios Tcha Tcha Tcha, propriedade da família Gallarza. Um excelente profissional, muito conhecedor de música em geral e que, de igual forma, ajudámos a alargar os horizontes relativamente ao nosso tipo de som.
Tear: Foi uma surpresa total para o Luís Barros, muito diferente do que estava habituado a ouvir e a gravar/produzir. Mas mostrou-se sempre muito profissional e encorajador.
Em termos de escrita o processo foi muito doloroso ou encontravam-se naquela fase mais inocente em que tudo era muito espontâneo?
Tear: Quando nos encontramos em processo de composição tudo é sempre intensamente doloroso e, por vezes, angustiante, na medida em que o desejo de expressar da melhor forma a dor, o sentimento e a melancolia que nos vai na alma parece às vezes um processo inglório, frustrante e inalcançável – a tal busca incessante pela perfeição que sabemos que nunca vamos atingir. Contudo, o «Infinity…», por ser o primeiro disco, viveu e foi muito fruto da nossa imaturidade, inocência e pureza. Por aí, talvez tenha sido mais espontâneo.
Flame: Os temas do álbum já estavam bem rodados antes de entrarmos em estúdio, resultado de muita labuta na sala de ensaio. As nossas ideias foram amadurecendo nessa fase de forma fluída, pois tínhamos ideias muito concretas de como deveria resultar no final. Como tal, trabalhámos arduamente e de forma meticulosa, para ficarmos o mais
perto possível da perfeição.
É reconhecido que o doom tem uma certa relação com o fado. Acham que foi também por essa razão que este disco se demarcou, até porque o seu conceito é virado para o ser-se português?
Tear: Algumas vezes em tom de brincadeira dizemos que os Desire são fadoom-metal! [risos] Agora a sério, com o «Infinity…» iniciámos um conceito lírico que tem sido transversal a todos os nossos discos. Narrámos uma história que conheceu o seu desfecho precisamente no «Infinity…». Os outros discos têm sido alvo de retrocessos e flashbacks, como o próximo disco que será cronologicamente talvez o último do conceito — o acto entre o «Locus Horrendus» e o «Infinity…». Trata-se de uma obra verdadeiramente trágico-romântica, profundamente poética e melancólica, onde os principais elementos são o amor, o sangue, a morte e o suicídio. Apesar da óbvia imaginação, este revela fases, momentos e experiências de vida que me foram influenciando no desenrolar do conceito e que o acabaram por enriquecer profundamente a nível expressivo. Sente-se, sem dúvida, a intensidade e o sentimento da alma lusa, ou não fosse também fortemente inspirado por grandes poetas portugueses
como Fernando Pessoa (uma das minhas maiores referências). E tal como acontece no «Infinity…», todos os nossos discos têm um pequeno poema dele na ilustração do encarte que, para além de servir de mote para aquilo que poderá ser desvendado,
funciona como um pequeníssimo resumo conceptual. Devo acrescentar que existiu sempre o cuidado de cada música e álbum funcionarem de forma isolada. Temos o argumento, a banda-sonora… falta só o filme.
Olhando agora um pouco para a parte mediática e promocional do disco. «Infinity…» foi algo difícil de aceitar pelo público ou um fenómeno de contágio imediato?
Tear: Teve uma curta fase inicial em que sentimos que foi difícil a sua aceitação. Tínhamos consciência de que não era um disco que as pessoas na sua generalidade se identificassem e interiorizassem facilmente. Por outro lado, estávamos plenamente confiantes de que a partir do momento em que começasse a ser absorvido, tudo seria diferente e se tornaria num disco de alguma forma marcante, importante e respeitado. Todavia, nunca imaginei que viesse a transformar-se numa obra de culto.
Flame: Foi um trabalho que de imediato suscitou as suas reacções, ora porque não havia muita gente preparada para receber algo do género, ora porque foi uma lufada de ar fresco no panorama nacional. Indirectamente, provámos que em Portugal existia uma banda capaz de ombrear com algum do material que se fazia lá fora.
Porque é que acham que é sempre tão difícil recriar o espírito de um primeiro álbum?
Flame: Não acho que seja difícil. Simplesmente são outros tempos, outra ingenuidade na sua forma mais pura, que, no nosso caso, acabou por resultar em algo de tão bombástico. Da mesma forma que o terceiro álbum de uma banda é sempre tão importante em termos de afirmação, o primeiro é sempre encarado como uma prova de ambição e carácter para o que lhe poderá seguir.
Tear: De uma forma geral, a carreira de uma banda é feita de um processo evolutivo, onde alguns pormenores vão ganhando cada vez mais importância e conquistando o seu lugar. Isso obriga os músicos a focarem-se para que o resultado final seja ainda mais conseguido e melhor do que o anterior. Daí compreender-se que se torna difícil voltar atrás e viver a mesma inocência e imaturidade de um primeiro disco. A identidade e personalidade estão lá e são essas que fazem a diferença.
Há a ideia de que os músicos de doom e gothic metal passam a vida a “cortar os pulsos”. Contudo, houve de certo muito episódio divertido e insólito durante a concepção do «Infinity…».
Tear: Momentos desses acabam sempre por acontecer, mas confesso que de momento não me recordo de nada muito relevante. Quanto à imagem que se tem e de que se fala dos músicos deste género, não concordo em absoluto. Somos pessoas normalíssimas, talvez por natureza com uma maior sensibilidade e emotividade, invadidas e absorvidas por certos estados de alma que acabam por nos dominar e se reflectem principalmente nas nossas fases criativas. Pessoalmente, atravesso sempre grandes momentos de introspecção quando escrevo ou quando compomos juntos. É um caminho que se revela sempre muito penoso e sofrido, uma verdadeira via sacra, diria… Os Desire são uma espécie de exorcismo da alma, como se lha arrancassem de mim próprio e depois ficasse ali em silêncio, a ouvir os seus lamentos e amarguras.
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