Cada artista tem a sua própria faísca individual de alguma luz que pode trazer ao mundo e, mesmo que se fale de morte, desespero e destruição da humanidade, há sempre a proverbial luz ao fundo do túnel. Os DEATHWHITE são um enigmático quarteto norte-americano e, ao seu terceiro álbum – o belíssimo «Grey Everlasting», que foi editado no passado dia 10 de Junho através da Season Of Mist – mostram como abraçar essa dicotomia de uma forma tão envolvente quanto opressiva. Dando continuidade à evolução que, durante a última década, tem visto o colectivo anónimo afastar-se progressivamente do desespero individual em direcção a algo que é mais existencial, assombrado e ligado ao poder da música extrema, esta nova colecção de temas afirma-se como a sua visão artística mais realizada até agora, revelando uma abordagem panorâmica ao dark metal que consegue ser, simultaneamente, fascinante e abrangente. Razões mais que suficientes para chegarmos à fala com um dos elementos não identificados do colectivo.
Esta questão de se manterem anónimos parece bastante importante para vocês. Decidiram que ia ser assim logo desde o início?
Sim, esse foi um dos princípios que estabelecemos no momento em que criámos os Deathwhite há dez anos. Estávamos à procura de formas de tornar o projecto interessante e único, já estava certo que íamos ser uma banda de estúdio e nunca iríamos tocar ao vivo… Basicamente, não queríamos cair naquelas ratoeiras de promoção em que, mais tarde ou mais cedo, todos os músicos acabam por cair. E o nosso ângulo era esse, queríamos que as pessoas ficassem intrigadas. Além disso, tem ajudado a que os ouvintes se foquem mais na nossa música que em coisas periféricas, porque as nossas personalidades, as pessoas que estão por trás dos discos, acabam por ser irrelevantes. Isso não deveria nunca ter qualquer influência na experiência que é ouvir os nossos discos. Olhando para trás, acho que o facto de termos retirado o elemento pessoal, e humano, da equação, ajudou as pessoas a julgarem-nos só pela música que fazemos. Verdade seja dita, nenhum de nós está interessado em ser o foco das atenções, não sentimos sequer necessidade de ter os nossos nomes nas liner notes ou seja o que for.
Parece-me óbvio que não pensaram nisto como “um truque”, mas durante esta última década têm surgido muitas outras bandas a fazer o mesmo e as pessoas começaram a torcer um bocado o nariz a esta questão do anonimato. Achas que isso vos pode prejudicar?
Essa é uma boa questão. Surgiram, de facto, muitas bandas anónimas durante estes últimos anos, hoje são certamente muitas mais do que aquelas que operavam desta forma na altura em que nos juntámos. No entanto, também não inventámos nada… Já havia bandas a fazer as coisas assim, algumas com muito mais sucesso, antes de nós. E sim, concordo que, actualmente, esta questão do anonimato pode prejudicar um projecto, sobretudo se o público perceber que não estão a fazer as coisas pelas razões certas. No nosso caso, temos alguns elementos que já fizeram coisas muito relevantes no espectro da música extrema e podíamos perfeitamente ter optado por capitalizar com isso, mas optámos por não o fazer… Respondendo à pergunta, não sei se nos pode prejudicar, mas é um fundamento dos Deathwhite e algo que pretendemos manter enquanto por possível.
Já o fizeram durante dez anos – o que, nos tempos que correm, é um feito e tanto.
Acho que o facto de não tocarmos ao vivo tem ajudado bastante. Olha para os Ghost, por exemplo; a partir do momento em que começaram a tocar ao vivo e, sobretudo, a fazer digressões, tornou-se rapidamente impossível manterem o anonimato. No nosso caso, inicialmente tínhamos decidido que não íamos dar concertos, mas eventualmente pensámos que talvez fosse interessante tocar os temas ao vivo e, em 2018, subimos ao palco pela primeira vez na nossa cidade natal, Pittsburgh. O pessoal que estava na plateia entende a essência da banda, alguns são nossos amigos, sabem que fazemos parte dos Deathwhite, mas respeitaram o facto de querermos permanecer-nos anónimos. Entretanto, tínhamos mais uns espectáculos agendados, mas surgiu a pandemia, dois dos nossos membros mudaram-se para fora da cidade e, de momento, voltar a tocar ao vivo não é algo que esteja nos nossos planos imediatos. Resultado, as pessoas ainda vão andar mais algum tempo a indagar quem raio somos. [risos]
Vamos, então, focar-nos na música. O facto de saberem que, à partida, os vossos temas não vão ser tocados ao vivo dá-vos mais liberdade no momento da criação?
Sim, sem dúvida. Tenho a certeza que já falaste com muitos músicos que dizem que escreverem este ou aquele tema com o público, ou com a reacção do público, em mente, mas o que fazemos é exactamente o oposto disso. É certo que não somos os The Beatles ou os Electric Light Orchestra, que eram puras criações de estúdio, mas as nossas canções também nunca são escritas com a hipótese de termos de as tocar ao vivo em mente. E claro, isso dá-nos outro tipo de liberdade na altura de escrever… É engraçado porque só quando começámos a ensaiar para o concerto que demos em 2018 é que nos apercebemos da quantidade de acordes bizarros que usamos, e que não são nada fáceis de tocar quando estás em palco, a tentar dar um espectáculo. A nível vocal também há muitos pormenores que são complicados de recriar de forma fiel ao vivo. Se olharmos para o «Grave Image», o nosso álbum anterior, há poucas linhas de voz que não tenham sido dobradas, e que não tenham uma harmonia ou um efeito qualquer.
Incorporaram um segundo guitarrista por alturas da edição do «Grave Image», não foi? Fizeram-no a pensar sobretudo nos concertos ou houve outra razão por trás dessa manobra?
Começámos a ponderar essa ideia por causa dos concertos, sim, mas este cavalheiro era um velho amigo da banda e já tinha estado envolvido com os Deathwhite em outras capacidades ao longo dos anos. Sempre gostámos da ideia de incorporar um solista, que complementasse o trabalho do nosso outro guitarrista e torna-se o som ainda um pouco mais “gordo”, por isso fez todo o sentido falarmos com ele. Além disso, é alguém com muita experiência no que toca a gravar em casa e isso ajuda-nos imenso na altura de gravar maquetas e tudo o mais. Como não tocamos ao vivo, as demos são a única forma que temos de sondar as águas, de testar as ideias que vamos tendo e de percebermos o que realmente funciona ou não, por isso fazemos sempre um trabalho de pré-produção muito detalhado. Geralmente é um processo demorado, que acaba por nos tomar entre doze a catorze meses e o nosso “novo” guitarrista tem sido fulcral no que toca a ajudar-nos a esse nível. Para além disso, é um multi-instrumentista fantástico e uma pessoa incrível, sem dúvida uma mais-valia enorme para os Deathwhite.
Tenho em conta que fazem uma pré-produção assim tão detalhada acabam por gravar os álbuns duas vezes, não?
Pelo menos duas vezes, sim. E acho que isso prova bem o trabalho e cuidado que pomos em cada uma das nossas composições. Para nós, é sempre como se estivéssemos a construir uma casa. Há alguém que cria os alicerces do tema e, depois, construímos o resto em cima disso. Toda a gente dá as suas ideias, todos temos oportunidade de colocar as nossas personalidades individuais nos temas e o resultado final é sempre um esforço do colectivo… Como nós somos todos bastante perfeccionistas, não queremos deixar nada ao acaso, portanto os temas acabam sempre por passar por diversos estados até estarem prontos a ser gravados definitivamente. Tudo isto é um trabalho de paixão e alguns dos seguidores da banda iriam achar piada a ouvir como algumas das canções soavam nas suas versões mais embrionárias. Temos esse material do nosso lado, por isso quem sabe se um dia não lançamos algo do género? Talvez lá para 2050, quando editarmos uma boxset com tudo o que gravámos ao longo dos anos. [risos]
É um processo moroso, gratificante ou um pouco de ambos?
Um pouco de ambos, sem dúvida. Pode ser um processo moroso e, às vezes, frustrante, porque somos a nossa própria câmara de eco… Não partilhamos os temas com mais ninguém a não ser o nosso produtor e, às vezes, isso torna as coisas um pouco complicadas, porque quando estamos tão isolados torna-se difícil sermos objectivos em relação ao que estamos a fazer. Mas lá está, apesar dessas dificuldades, no final acaba sempre por ser muito gratificante, porque criámos os Deathwhite para escrever canções e lançar músico. Esse foi o objectivo que estabelecemos logo no início e, todos estes anos depois, nada mudou em relação a isso.
Segundo o comunicado de imprensa que acompanha o álbum, o estado do mundo foi uma fonte de inspiração bastante determinante no processo de composição do «Grey Everlasting».
Correcto. Vivemos numa época em que a realidade é bastante mais assustadora que a ficção, isto já para não dizer que o mundo parece definitivamente condenado à destruição. Nos Deathwhite, o que mais nos choca é percebermos que a raça humana fez progressos tão grandes a tantos níveis, mas continuamos a ser os nossos piores inimigos. Por um lado, temos acesso cada vez mais facilitado ao conhecimento a todos os níveis, mas só fazemos asneiras no que toca ao clima, ao progresso social, à educação e à forma como lidamos com um sem número de problemas, da crise dos opiáceos, às armas ou até à pandemia. Este álbum fala disso, do facto de, por esta altura, já devermos estar mais que capacitados para conseguirmos ajudar quem precisa, quando parece que só caminhamos na direcção contrária.