Há quem ache que o death metal se deve manter tão underground quanto possível e nós, aqui deste lado, até concordamos parcialmente com essa ideia. No entanto, a verdade é que, em Portugal, país tão pequeno e com uma cena tão reduzida, infelizmente isso quer dizer que a passagem de uma das melhores bandas de death metal da actualidade não consegue sequer registar lotação esgotada numa sala de dimensões médias como é o RCA Club, em Lisboa. Sem que tivesse apresentado um aspecto desolador, a verdade é que plateia da sala de Alvalade esteve sempre mais ou menos composta, mas sem nunca registar a afluência desejada para o cartaz apresentado nesta quarta edição do Apostles Of The Eternal Fire. O evento regressou em força depois de dois anos de paragem forçada pela pandemia, materializando a união blasfema dos gregos DEAD CONGREGATION e dos nacionais THE OMINOUS CIRCLE, numa data-dupla em Lisboa e Porto. Remetemo-nos aqui ao primeiro destes dois concertos, que contou com os também portugueses INVOKE como “abertura”.
Apoiados na novidade «Deo Ignoto», de 2022, os músicos lisboetas apresentaram a sua fusão de death e black metal melódico com laivos de thrash sem que tivessem provocado grande impacto nos presentes. Dedicados, mas prejudicados pela natureza algo rudimentar dos arranjos de alguns temas e por uma prestação pouco coesa, deixaram no ar a ideia de que ainda lhes faltam alguns quilómetros de estrada nas pernas para conseguirem ter realmente a força que se pretende neste tipo de coisa. Changeover não demasiado longo e estavam em palco os THE OMINOUS CIRCLE. Com as filas da frente inundadas por um fumo espesso, descia ali o manto negro dos músicos do Porto sob a sala lisboeta. Escondidos pelas vestes ritualistas, vultos iluminados pelos focos de luz em tons quentes, como se saber quem está debaixo da daquelas “máscaras” fosse realmente importante. A verdade é que não é, sobretudo quando os temas têm potência para criar um ambiente negro como breu, que se estranha e entranha, à força de uma abordagem sufocante ao death metal, que não dá grandes tréguas enquanto estão em palco. E tenham ou não sofrido mudanças de formação, a verdade é que, neste concerto, revelaram uma coesão como provavelmente nunca lhes tínhamos visto antes. Com a descarga a desenvolver-se em modo rolo compressor, percorreram a estreia «Appalling Ascension»… E, convenhamos, se há defeito a apontar é mesmo esse, sendo que aquilo que serviram foi o mesmo concerto que andamos a ver desde 2017. Nem isso lhes beliscou a eficácia da entrega, no entanto. Sim, o segundo álbum começa a tardar, sobretudo por sabermos que estarmos perante uma banda que gravou um disco como o de estreia, mas é sempre bom matar saudades de uma descarga impiedosa como a da «To En». Enormes kudos por se manterem vivos nesse furacão de brutalidade, mas agora venha de lá esse segundo disco.
Esta era só a segunda vez que víamos os DEAD CONGREGATION ao vivo depois de uma actuação de boa (mas não excelente) memória num SWR Barroselas ainda antes da pandemia, por isso os gregos eram esperados com curiosidade. Não se fizeram rogados e provaram ali porque são umas das bandas de topo no underground death metal actual. Pese o mesmo pendor para um regime de edições espaçadas – são apenas dois álbuns e uns quantos EPs em vinte anos de carreira – têm na manga a colecção de temas que basta para assinarem espectáculos avassaladores. De rosto descoberto, menos “sinistros” mas mais viscerais, o quatro músicos de Atenas construíram a sua reputação como sendo capazes de fornecer um som que parece o inferno em forma de áudio – riffs enormes e fortes, explosões de bateria e uma entrega vocal totalmente selvagem. Em palco, por incrível que possa parecer, conseguem amplificar ainda um pouco mais o som pútrido das gravações e dar-nos todo o peso das paisagens sonoras criadas pela música. Em 2023, tendo em conta o que vimos, fica a garantia de que andam a assinar concertos de tirar o fôlego. A sinergia entre a dupla de guitarristas Valtsanis e T.K funciona no ponto e cria um som profundo e monstruoso, muito bem apoiado na secção rítmica de George Skalkos no baixo e Vagelis Voyiantzis na bateria, reforço garantido da intensidade que os caracteriza. Dos riffs selváticos da «Serpentskin» à entrega gutural de Anastatis Valtsanis em «Only Ashes Remain», passando por um alinhamento escorreito, que resumiu de forma equilibrada o melhor do que fizeram ao longo dos anos, desferiram um soco no estômago e reforçaram a ideia de que, actualmente, não têm grande competição à altura num revival OSDM cada vez mais saturado.
Dúvidas restassem, quando tens o Tó Pica, dos Sacred Sin, a observar atentamente os guitarristas no parapeito do andar de cima, o João Duarte, dos Corpus Christii, Irae e Vltimas, a “chegar-se à frente para ver melhor”, um ex-Analepsy e músicos dos Holocausto Canibal e Process Of Guilt impressionados com o que se está a passar em palco, sabes que tens um portento impressionante pela frente. Mais, o facto de apelaram a um veterano da cena death metal lusa e a um dos mais requisitados músicos do black metal luso contemporâneo, prova bem o apelo que têm para os fãs dos dois géneros, com uma abordagem ao death/doom que arrasta as regras dos 90s para o novo milénio. A sujidade necro dos Incantation, os pinch harmonics dos Immolation e a influência de algumas das outras bandas acabadas em “ation”, a ocasional verdascada violenta a invocar os espíritos de Ross Bay. Tudo muito tight, com uma entrega muito confiante.
Cá fora, alguém fazia um balanço positivo, remetia referências ao híbrido thrash/death dos franceses Loudblast ou Massacra e, em tom de piada, constatava só não ter “curtido muito das letras do gajo”. É, de facto, o pormenor que menos interessa aqui, sendo que, provavelmente, o facto “de não se perceber nada do que esta gente está a berrar” faz parte do que nos trouxe a este concerto. Também é um facto que estamos em 2023 (não em 1990!) e que, quem anda a ouvir música extrema e underground desde aí, já viu e ouviu isto feito, desta e doutras formas, pelo menos umas centenas de vezes. No entanto, quando é apresentado assim, de uma forma tão convincente, não há como não negar o apelo de prestações como as que os THE OMINOUS CIRCLE e os DEAD CONGREGATION assinaram nesta noite fria na rua, e fétida dentro do RCA Club.