DEAD CAN DANCE @ Coliseu dos Recreios, Lisboa | 01.06.2022 [reportagem]

Não nos podemos queixar deste período de retoma, pois não? Parece que todos os dias há um concerto, ou mais que um, que todas as semanas há um festival, que em cada sala para onde nos voltamos vai estar a tocar alguém, com todos os géneros e dimensões musicais a serem representados. Ainda que muita desta fartura seja parte do catching up em relação ao que não pôde acontecer nos últimos dois anos, a verdade é que estamos a passar uma mini-era dourada de eventos ao vivo, incluindo mesmo os nomes maiores e mais universais, os que transcendem estilos, e que há décadas quebram barreiras e supostos limites, conquistando tudo e todos e abolindo fronteiras, até aquelas entre o underground e o mainstream. Foi assim com a visita dos Einstürzende Neubauten há umas semanas, por exemplo, e voltou a ser assim com os Dead Can Dance ontem à noite, no Coliseu dos Recreios. Tal como com os germânicos liderados por Blixa Bargeld, com quem até se podem estabelecer algumas semelhanças metafóricas (diríamos que são duas faces de uma mesma moeda transcendente e evocativa – uns mais místicos e espirituais, outros mais urbanos e decadentes, mas com um ethos surpreendentemente paralelo), o duo formado na Austrália há mais de 40 anos tem-nos proporcionado, ao longo dos anos, o privilégio de visitas relativamente frequentes (esta foi a sexta, e hoje à noite, no mesmo sítio, acontecerá a sétima), e como tal, temos no nosso arsenal analítico a nem sempre justa perspectiva da comparação. E por mais que seja tentador pôr esta performance ao lado das de 2019 na Aula Magna, por exemplo, até por ainda estarem bem frescas na nossa memória, vamos tentar resistir-lhe, porque se é um facto que nos pareceram mais expansivos, mais comunicativos, e com uma toada a roçar mais o “épico” nessa altura, também é um facto que são duas aproximações bem diferentes ao espectáculo de palco, mesmo que o setlist em ambas as ocasiões tenha roçado o 50/50 em termos de semelhanças e diferenças.

A actuação de ontem, parte de uma digressão – que termina aqui, ao fim de um périplo de quase dois meses pela Europa – que tinha sido originalmente anunciada como “A Celebration – Life & Works 1980-2019”, foi isso mesmo – uma celebração, um passeio de uma leveza quase poética por alguns dos momentos mais marcantes de uma carreira que ficará (já está, aliás) gravada a letras douradas na história da música. Chegou a dar a este envelhecido escriba alguma inveja saudável de quem os via pela primeira vez nesta ocasião, não só por ter aquele rush da “estreia”, mas porque as características deste concerto – muito mais um “concerto”, de facto, leia-se um desfilar de temas tocados por uma banda, do que algo mais expansivo ou teatral como aconteceu no passado – eram as ideais para uma primeira vez. Até a decoração de palco era elegante mas minimalista, com algumas folhas caídas e cenários texturais simples a não se meterem muito na conexão directa músicos/público. Se é possível encapsular em cerca de duas horas o porquê de os Dead Can Dance serem essenciais para toda a gente, seja para o metaleiro mais empedernido ou para o fã de música clássica mais elitista ou para toda a gente pelo meio, foi isso mesmo que aconteceu. Quase um DCD starter kit. O alinhamento diz quase tudo, com quase todos os temas a arrancarem um aplauso excitado de um público conhecedor nos seus primeiros segundos – se os Dead Can Dance têm algo como uns greatest hits, ontem estiveram quase todos presentes. Foi quase como revisitar velhos amigos com quem não precisamos de muito para nos sentirmos confortáveis, em casa. Sem surpresas, sem desvios dessa intenção. Não, o objectivo era mesmo, como o título da tour indicava, o da celebração. Não houve por isso também necessidade de comunicação especial com o público. Já nos conhecemos de outros “carnavais”, de facto. Uma resposta bem-disposta a um “we love you, Lisa“, uns “obrigado” e “boa noite” em bom português do sempre simpático Brendan Perry, e está bom assim.

Como sempre, a actuação dividiu-se entre os temas “mais Lisa Gerrard“, e os “mais Brendan Perry“, flutando os ambientes entre a transcendência hipnótica e quase intocavelmente sagrada da voz impossivelmente alto da diva australiana, e os tons mais terrenos e mais emocionalmente directos de Perry. Rodeados por um quinteto de excelência, no qual se incluía o irmão mais novo do britânico, Robert Perry, e a convidada especial para esta digressão, a multi-facetada escocesa Astrid Williamson (vale a pena investigar a sua discografia, para quem não a conheça tão bem), em posição de grande destaque ao lado do duo nuclear, naturalmente que roçaram a perfeição em todas as peças interpretadas, e consequentemente highlights serão mais que nunca uma questão de preferência pessoal pelos originais. Dito isto, o poder tribal de «Black Sun», a emoção transbordante de «Children Of The Sun» – particularmente tendo sido a primeira do único encore energeticamente exigido pelos presentes – e, tal como já tinha acontecido em 2019, a rendição estratosférica de Lisa Gerrard de «The Wind That Shakes The Barley», balada irlandesa escrita por Robert Dwyer Joyce no século XIX, são marcos que dificilmente serão esquecidos. Mas sem querer ser demasiado corny, o highlight maior foi mesmo o sentido de comunidade que se sentia na plateia e nas bancadas. Gente de todas as idades, de variadíssimas “tribos”, todos a sentirem esta música correr-lhes nas veias à sua maneira, seja a dançar, seja em introspecção de olhos fechados, seja até com um suave headbanging nas partes mais intensas – somos todos muito diferentes uns dos outros, mas ali tínhamos todos algo muito importante em comum.

O último tema, «Severance», um de dois escolhidos de «The Serpent’s Egg» (o outro foi a igualmente grandiosa «The Host Of Seraphim», curiosamente também a fazer de tema de encerramento, mas antes do encore), foi um culminar perfeito para uma noite fantástica – apesar do seu título, é um dos que junta as duas aproximações bem diferentes do duo Gerrard/Perry, uma súmula do génio que percorre cada segundo das explorações musicais destas duas grandes figuras. Uma exploração que já abarca quatro décadas, e que ainda não dá sinais de paragem. Que continuem a levar-nos nesta viagem durante muito tempo.

Alinhamento:
Yulunga (Spirit Dance)
Amnesia
Mesmerism
The Ubiquitous Mr. Lovegrove
Persian Love Song (The Silver Gun)
In Power We Entrust The Love Advocated
Avatar
The Carnival Is Over
Cantara
Opium
Sanvean
Dance Of The Bacchantes
Bylar
Black Sun
The Host Of Seraphim
Encore:
Children Of The Sun
The Wind That Shakes The Barley
Severance

Fotos: Pedro Almeida