Desde cedo que os BLOOD INCANTATION se mostraram como uma banda muito diferente de todas as outras, mesmo dentro do mundo muito particular do death metal progressivo e “cósmico”. O seu trajecto tem provado essa individualidade de forma ampla, e «Timewave Zero», o novo e desconcertante álbum atmosférico – mais Tangerine Dream que Morbid Angel, digamos assim -, promete deixar muitos de cabeça à roda. Mas não se preocupem, porque este quarteto é feito de pessoas ponderadas e artisticamente ambiciosas, que até já tinham este passo aparentemente surpreendente planeado desde… 2011. A sério. Descobrimos o master plan dos Blood Incantation e muito mais numa conversa super interessante com o Paul Riedl (guitarras e voz), o Isaac Faulk (bateria) e o Morris Kolontyrsky (guitarras).
Não há muitas bandas de death metal psicadélico/progressivo que também fundam música electrónica progressiva e world music e prog rock experimental!
– Paul Riedl
Comecemos pela pergunta óbvia – como é que surgiu a ideia para fazer um álbum com estas características? As pistas de que são fãs de música ambiente e feita com sintetizadores já estavam espalhadas pelo vosso death metal, claro, mas daí a um trabalho todo assim…
Paul Riedl: Quando começámos a banda, já tínhamos este álbum em mente, como fazendo parte de todo o conceito, para dizer a verdade. Em 2011, era apenas uma das coisas que discutimos em relação à aproximação musical e à estratégia global daquilo que queríamos que esta banda fosse. Nessa altura, entre outras decisões, estabelecemos que iríamos fazer a nossa demo, que ia ter uma estética mais minimalista, toda a preto e branco, depois o primeiro álbum teria uma estética totalmente colorida, com tonalidades de amarelo e púrpura, e o segundo álbum seria mais numa onda verde, como o «Blessed Are The Sick» dos Morbid Angel. O terceiro álbum, seria um álbum ambiental, e temos estado a trabalhar para isso desde 2011, ao invés de ter decidido algures durante o trajecto que o iríamos fazer.
Morris Kolontyrsky: Esta é a primeira vez que temos algo para “limpar o palato”, digamos assim, algo de radicalmente diferente, e é nesta altura que sentimos que cumprimos as obrigações a que nos sujeitámos com o plano inicial. Como que conclui não só o trajecto dos últimos dois anos, mas também esta primeira fase da existência da banda.
Isaac Faulk: Para além disso, antes de termos feito este álbum, há que dizer que todos os outros lançamentos anteriores tinham material que já tinha sido escrito há muitos anos atrás. Mesmo no «Hidden History…», a canção «The Giza Power Plant» já data de 2013, e já a tocávamos ao vivo regularmente desde então. Basicamente, agora com o «Timewave Zero» sentimos que solidificámos essa era da banda, e a partir daqui, sentimos que há potencial ilimitado para fazermos o que quer que queiramos fazer.
Apesar de já estar, então, planeado há muito, este é o vosso primeiro álbum que não tem material “antigo”, não é?
Paul: Sim, sim. Especificamente, só começámos mesmo a trabalhar nele em 2020, quando nos foi impossível fazer a tour que tínhamos planeada para o «Hidden History Of The Human Race». Tínhamos algumas coisas para fazer nesse ano em termos “metálicos”, principalmente filmar algumas coisas para a Century Media e para o Adult Swim Festival, mas essencialmente, quando as digressões foram canceladas, desmontámos a bateria e improvisámos com sintetizadores durante quase um ano. Podemos gravar no nosso espaço de ensaio, portanto fomos gravando todas essas sessões e jams para podermos retirar ideias depois. Em 2021, quando foi altura de gravar “a sério”, tínhamos sete ou oito meses de material cheio de ideias espontâneas que nos tinham aparecido durante improvisações, e retirámos bastante material daí. Improvisar juntos é algo que nunca tínhamos feito muito, e isso foi muito benéfico para estabelecer uma nova linguagem na banda, para nos dar novas ferramentas na forma como escrevemos temas. Apesar disso, a montagem das várias partes não foi assim tão diferente, diga-se – foi, isso sim, feita com outros instrumentos e ferramentas que não aqueles com que as pessoas mais nos identificam. Foi um bom desafio, e muito recompensador e inspirador, aprender a comunicar de maneiras diferentes e com outras nuances.
Foi um processo moroso, essa nova aprendizagem? Ou foi natural?
Paul: Uma vez estabelecida essa “nova base”, tudo aconteceu muito rápido, por acaso. Algo interessante sobre os sintetizadores, é que é muito fácil – e faço muito isto em vários projectos meus – improvisar e estar só ali noodling até aparecer alguma coisa que soe bem. Há muitos grandes álbuns que surgiram só de pessoas estarem um bocado a brincar com aquilo, tenho centenas deles e adoro-os. Mas por causa disso, as pessoas podem subestimar um bocado este nosso trabalho, e é preciso perceber que a música foi escrita, na mesma, por todos nós enquanto banda. Não chegámos ao estúdio e inventámos merdas. A preparação foi tal e qual a que fazemos com os nossos discos de death metal – há espaço para criatividade e improvisação até ao último momento, sim, mas não é tudo “à balda”. Se alguém comete algum erro ou se desvia demais, temos que parar e recomeçar a gravação, rebobinar a fita, fazer reset dos sintetizadores, encontrar o tom certo outra vez…
Gravaram “ao vivo” no estúdio, é isso?
Paul: Os temas foram gravados em takes completos, com toda a gente a tocar, sim. É uma gravação “ao vivo”, nesse aspecto, sim. E têm muito poucos overdubs. Aliás, pode ser surpreendente, mas o «Timewave Zero» tem muito menos overdubs do que os discos anteriores (que também foram gravados “ao vivo”, note-se). No fundo, foi uma mistura da nossa aproximação tradicional e de algo completamente novo.
Há uma parte na «Ea Third Movement», onde entra de repente uma guitarra acústica, não sei se é mesmo…
Morris: É sim senhor. [risos] Há partes de guitarra acústica em ambos os temas principais do álbum.
Maravilha. [risos] E sim, como dizia, a forma quase luminosa como as guitarras irrompem pela música adentro, como que a elevando para outro plano na altura em que pedia mesmo isso, é dos momentos em que se percebe que tudo aqui foi pensado, planeado. Mesmo com origens improvisacionais, o resultado final é muito “escrito”, não é?
Isaac: 100% escrito. [risos]
Paul: No final de contas, é tudo escrito, sim. Apesar de termos pegado em partes cuja origem veio da improvisação, mas no final tudo é pensado e escrito. Na versão especial digipak do álbum, que vem com um Blu-ray, há uma faixa-bónus que é improvisada, que até serve para iluminar um bocado o processo de desenvolvimento do álbum, antes de o termos começado efectivamente a escrever e a reaprender a tocar juntos neste formato. Já há algum tempos que queríamos fazer um tema com essas características, porque mostra um passo do nosso processo que normalmente não mostramos – até no «Hidden History…» já considerámos fazer algo desse género, mas acabámos por desistir da ideia porque não era o contexto certo. Ia ser só uma curiosidade, quatro gajos a improvisar com teclados, e seria aquilo que toda a gente esperaria, só um aparte. Mas agora não só está contextualizado, mas é uma amostra do processo que levou ao álbum. Acabou por ser o tema que levou com mais pós-produção, um bocado no espírito dos Tangerine Dream ou dos Pink Floyd do início, onde faziam jams longas e depois retiravam algumas partes para enfatizar outras coisas, com overdubs e tal, para formar uma paisagem vasta. Portanto, essa edição especial acaba por ter os dois mundos – a parte arranjada e planeada, e a parte espontânea e improvisada.
Nessa edição, à qual infelizmente não tivemos acesso, o tal Blu-ray tem 40 minutos de visuais do Wayne Joyner, para acompanhar o álbum. Num álbum com características que se adequam muito a este cruzamento de media, isto pode ser um ponto de partida para mais colaborações dessas no futuro?
Paul: Acho que sim, sem dúvida. Fizemos um vídeo para a «Inner Paths (To Outer Space)» que teve uma espécie de animação parecida, meio psicadélica, “planetária”, e os visuais do Wayne são basicamente isso, mas vezes dez! É uma jornada completa, uma paisagem densa, visualmente rica e profundamente detalhada. Para mim até resultaria sem música, sinceramente, portanto é incrível termos as duas coisas ligadas. Mas sim, estás certíssimo – a junção deste tipo de música a este tipo de visuais é algo que pretendemos reforçar muito no futuro, é um objectivo gigantesco que temos na evolução da banda e daquilo que fazemos. Design de som, produção cinematográfica, fazer bandas-sonoras, é uma ambição muito grande que os Blood Incantation têm, e esta foi a nossa forma de mostrar isso, que queremos fazer música que é cinematográfica no seu espectro de ambição, e que já estamos abertos a esse mundo. Se alguém da Planetary Society ou da NOVA nos pedisse para fazermos música para acompanhar os seus trabalhos, seria um sonho tornado realidade e estaríamos 100% prontos.
Este vosso passo, ainda que arrojado, não é inédito em bandas mais extremas. Recordo por exemplo o «Celestite» dos Wolves In The Throne Room, que numa conversa recente que tivemos com o Aaron Weaver, ele chamou – ainda que na brincadeira – de “o álbum que toda a gente odeia”. Tiveram algum tipo de preocupação em relação à aceitação que o «Timewave Zero» pode ter com os vossos fãs mais… ortodoxos, chamemos-lhes assim?
Isaac: Honestamente, isso é algo em que nem sequer pensámos até começarmos a dar entrevistas. [risos] Quando começámos a trabalhar no álbum, para nós era só o próximo passo da nossa progressão, principalmente porque, como dissemos, até era algo que já estava planeado há muito. Mas quando começámos, antes de mais, a conversar com a editora, percebemos que eles tinham algumas preocupações, porque até já tinham tido experiências negativas com outras bandas que tiveram, basicamente, álbuns que foram um flop por serem álbuns ambientais, “não-metal”, digamos assim. Isto foi antes de terem ouvido a música, no entanto, porque quando lhes mostrámos o que tínhamos, eles até ficaram bastante entusiasmados por trabalhar no álbum. Depois, quando começámos a dar entrevistas é que a maior parte dos jornalistas nos tem posto essa questão, se nos preocupa que alguém não vá gostar muito. Nunca nos ocorreu isso antes! E nesta altura, muito sinceramente, a) não estamos preocupados e b) isto é algo que temos que fazer para nós. Mais do que para outras pessoas.
Paul: É como o Morris disse há pouco, temos algo para limpar o palato, agora. E como o Isaac também mencionou, fomos tendo música nos álbuns que já tinha sido escrita há cinco ou seis anos. Portanto, de cada vez que temos lançado um álbum, todos os fãs – naturalmente, claro – ficam entusiasmados porque é música nova dos Blood Incantation, mas para nós não é de todo música nova. Já tocamos esses temas não só nos ensaios mas mesmo ao vivo há bastante tempo – já tocávamos temas do «Starspawn» na tour do «Interdimensional Extinction», já tocávamos temas do «Hidden History…» nas tours do «Starspawn»… Quando os álbuns saem, não é que sejam old news para nós, mas já não é o que estamos a fazer. Com o «Timewave Zero», não só o escrevemos todo de raiz, mas também é o nosso álbum mais colaborativo de todos. Foi um esforço igual das quatro pessoas que compõem esta banda que resultou na música soar como soa, é uma aproximação coesa e partilhada, como nunca fizemos. É o que nos faltava fazer. Por isso é que sentimos que a partir de agora estamos completamente livres – com os álbuns que já gravámos, temos perante nós todo o repertório de música que sabemos e que gostamos de fazer juntos, todas as atmosferas, todos os riffs, todas as ferramentas. Temos todo um mundo de influências para nos inspirarmos, e essas influências são todas da nossa própria música.
As vossas influências cada vez mais são internas, ao invés de externas.
Paul: Exactamente. O Isaac disse isso muitas vezes nas entrevistas na altura do «Hidden History…», que estamos cada vez mais influenciados pela nossa música e cada vez menos pela de outras bandas. Claro que continuamos a adorar profundamente as nossas bandas favoritas, temos muitos riffs que são inspirados nos Morbid Angel, Gorguts, Death ou Disincarnate, nunca negaremos isso, mas estamos cada vez mais interessados em explorar as partes que ligam a nossa música e que são Blood Incantation, são essas partes que queremos destacar no futuro. E o «Timewave Zero» é uma parte essencial desse processo.
Há o perigo de a “liberdade” poder eventualmente descaracterizar aquilo que chamou as pessoas aos Blood Incantation ao início?
Paul: Acho que não. Claro que quando falo em liberdade, também não quer dizer que vamos fazer um álbum de reggae ou de ska a seguir. [risos] O que queremos dizer com isso é que, tendo toda esta música que fizemos “no bolso”, o que vier a seguir será muito mais o som dos Blood Incantation, e não o som de outras bandas e influências.
E depois desta experiência, mesmo voltando ao death metal, será música mais colaborativa também, provavelmente?
Paul: Sim, exactamente. Já temos falado muito sobre o nosso próximo álbum – que, sim, vai ser algo mais próximo da “música extrema” novamente –, e sabemos que vai ser, apesar desse “regresso” estilístico, mais experimental e mais colaborativo que nunca para nós. Vai incluir todas as nossas componentes progressivas. Todos concordamos que os Blood Incantation não chegaram nem perto da sua forma final. Até agora só mostrámos as várias polaridades diferentes do nosso som. Acho que vai ser a partir do próximo álbum que vamos começar a misturar tudo de uma forma nova e fresca – porque agora, como expliquei, é que nos sentimos confiantes e com todas as ferramentas para fazer isso – e a mostrar às pessoas os verdadeiros objectivos desta banda. Não há muitas bandas de death metal psicadélico/progressivo que também fundam música electrónica progressiva e world music e prog rock experimental e coisas assim. Queremos misturar isso tudo de uma forma que seja, esperemos, muito fixe. Estamos entusiasmados para fazer isso agora.
«Timewave Zero» já está disponível através da Century Media Records.