BLOOD INCANTATION

BLOOD INCANTATION + AUTHOR & PUNISHER @ Music Station, Lisboa | 19.10.2025 [reportagem]

Entre o cosmos e a máquina, BLOOD INCANTATION e AUTHOR & PUNISHER transformaram a Music Station num templo de gravidade cósmica.

Há espectáculos que nos puxam para dentro de uma sala, como quem entra num refúgio de som e de intensidade, e há outros que nos projectam para fora do planeta, arrancando-nos da gravidade do real e lançando-nos para o espaço profundo. O regresso dos BLOOD INCANTATION a Portugal pertence, sem margem para dúvida, à segunda categoria. Desta vez, a banda de Denver chegou com o muito aplaudido «Absolute Elsewhere» na bagagem — um disco que consolidou a sua reputação como uma das forças mais visionárias e singulares do metal contemporâneo.

Nos últimos anos, o percurso dos BLOOD INCANTATION tem sido um dos fenómenos mais improváveis e fascinantes do metal extremo contemporâneo. O que começou como um culto subterrâneo de death metal progressivo em pequenas salas evoluiu para uma entidade de alcance quase universal. Desde o lançamento de «Starspawn», em 2016, e, sobretudo, com o impacto sísmico de «Hidden History Of The Human Race», de 2019, a banda viu o seu nome atravessar fronteiras insuspeitas: da crítica especializada até às páginas do The Guardian, que descreveu o grupo como “uma das forças mais visionárias do metal moderno”.

A ascensão foi meteórica, mas orgânica — sustentada por uma estética coerente, uma ética de trabalho obsessiva e uma ambição artística que transcende o próprio género. Hoje, os BLOOD INCANTATION já não pertencem apenas ao underground que os viu nascer; são uma referência de vanguarda, um caso raro de uma banda extrema que cresce sem concessões, expandindo progressivamente o seu público sem abdicar do mistério e da densidade que os tornaram únicos.

No entanto, antes da entrada da atracção principal da noite em palco, os AUTHOR & PUNISHER abriram o portal com maquinaria, suor e aço, num alinhamento que parecia desenhado por engenheiros de uma outra galáxia. Quando Tristan Shone surgiu em palco, rodeado pelas suas engenhocas ciclópicas e cabos serpenteantes, parecia um operário de uma usina interdimensional.

O som que dali saía era físico — um martelo pneumático no peito, um rugido de metal vivo, apoiado num alinhamento que foi uma descida industrial aos infernos do ruído, uma performance onde o corpo e a máquina já não se distinguiam. Cada batida era uma faísca; cada berro, um choque eléctrico. A Music Station estremeceu, e o público percebeu: aquilo não era um prólogo, era o ritual de iniciação.

Às 21:45, um fumo espesso cobriu o palco. As luzes azuis e verdes desenharam um halo denso sobre o público. Os BLOOD INCANTATION surgiram das sombras — Paul Riedl, Isaac Faulk, Jeff Barrett e o teclista convidado John Gamiño — como arqueólogos do espaço profundo, prontos para desenterrar frequências esquecidas. Sem introduções, a banda mergulhou directamente em «The Stargate», a colossal peça que ocupa o primeiro lado de «Absolute Elsewhere».

Durante quase vinte minutos, o tempo pareceu perder consistência. Riffs densos e hipnóticos ergueram-se sobre um oceano de teclados etéreos; as harmonias flutuaram como poeira cósmica num vácuo de luz. É death metal, sim — mas filtrado por uma lente psicadélica, entre a brutalidade dos IMMOLATION, o labirinto cerebral dos GORGUTS e as viagens sem fim dos PINK FLOYD e TANGERINE DREAM.

Desde o lançamento de «Hidden History Of The Human Race», os BLOOD INCANTATION têm vindo a expandir o seu universo sonoro, misturando death metal técnico e atmosferas cósmicas com uma ambição quase filosófica, e o mais recente disco apenas reforçou essa dimensão transcendental. Já não se trata apenas de riffs e brutalidade: trata-se de construir portais, de explorar o som como linguagem do desconhecido. Em palco, esse impulso ganha corpo — e o resultado é uma experiência que ultrapassa o mero concerto e se aproxima de uma viagem intergaláctica em direcção ao absoluto.

A sala, lotada, oscilava entre um silêncio reverente e um transe colectivo. O som, impecavelmente nítido, permitia ouvir o dedilhado preciso de Riedl e a respiração metálica do baixo de Barrett, enquanto Faulk mantinha um pulso humano no meio do caos galáctico. Gamiño, com as suas camadas de sintetizadores, parecia expandir a sala até à órbita de Saturno.

O concerto prosseguiu com «The Message», a segunda metade de «Absolute Elsewhere» — três partes que condensam o ADN da banda: técnica, peso e transcendência. As passagens de guitarra evocavam os CYNIC, os solos respiravam melancolia cósmica, e o público finalmente explodiu em movimento. A seguir, o passado. Os BLOOD INCANTATION recuaram até «Hidden History Of the Human Race» e serviram uma dupla demolidora: «The Giza Power Plant» e «The Vth Tablet (Of Enûma Eliš)».

As luzes tornaram-se vermelhas, a atmosfera mais densa, e os riffs, mais carnívoros. As canções antigas soaram ainda mais viscerais depois da viagem astral do novo disco — como se o cosmos tivesse colidido com a carne. A banda saiu de cena sob aplausos ensurdecedores, mas ninguém se mexeu. O encore era inevitável. Riedl regressou primeiro, sob uma luz branca quase religiosa, e anunciou «Meticulous Soul Devourment», de «Starspawn». A peça, lenta e dissonante, foi uma espécie de exorcismo colectivo — o público, imóvel, parecia suspenso no ar. Depois, sem aviso, explodiu «Obliquity Of the Ecliptic», do EP «Luminescent Bridge», um final em cataclismo: guitarras em espiral, bateria em convulsão, vozes a rasgar o espaço.

No fim, o silêncio. E a confirmação do que muitos já sabiam — os BLOOD INCANTATION não são apenas uma banda de death metal. São uma das poucas formações modernas capazes de transformar peso em poesia astral, técnica em transcendência e brutalidade em arte. Lá fora, Lisboa voltava ao ruído habitual, mas o eco persistia — uma vibração invisível, como se o concerto ainda orbitasse em torno do planeta. Os AUTHOR & PUNISHER abriram o portal; os BLOOD INCANTATION levaram-nos ao limite do espaço conhecido.