A 19 de Maio de 1990, QUORTHON, o enigmático estratega de BATHORY, pisou pela primeira (e última) vez solo lusitano e influenciou toda uma geração de jovens músicos apostados em explorar as franjas mais extremas do metal.
A discussão sobre as origens de cada estilo musical não é imune a diferentes interpretações e leituras, mas é algo (mais ou menos) pacífico que o black metal nasceu com os VENOM. Foi, inclusivamente, a banda de Newcastle que baptizou o género com o seu segundo disco, mas não é óbvia, especialmente às novas gerações, a associação da sua sonoridade às bandas mais populares do género, como MAYHEM, DARKTHRONE ou WATAIN. Se quisermos encontrar um ponto de partida para a segunda vaga do black metal, com a sonoridade que hoje lhe associamos, temos obrigatoriamente de falar em BATHORY.
Foi em 1983 que Tomas Forsberg, imortalizado como Quorthon, fundou a banda que, embora inicialmente com uma formação completa, logo no primeiro disco apenas o teve a ele creditado como músico, sendo também notada a ausência de uma foto da banda, que contribuiu para o mistério que envolvia os BATHORY.
Este disco, bem como a anterior participação na compilação «Scandinavian Metal Attack» deu-lhes alguma notoriedade no underground, mas foi o álbum seguinte, «The Return Of Darkness And Evil », que trouxe os elementos que iriam definir a segunda vaga do black metal, com uma sonoridade mais negra e pesada, e também com uma abordagem ao satanismo mais vincada.
Se «The Return Of Darkness And Evil» foi a introdução, «Under The Sign Of The Black Mark» foi o primeiro álbum de black metal no seu sentido mais actual, que iria despoletar toda a cena escandinava, com particular destaque para a Noruega, por intermédio de bandas como MAYHEM ou DARKTHRONE a criarem um movimento que teria incríveis repercussões em toda a música extrema.
Estas bandas norueguesas, ainda que fundadas mais cedo, encontram a sonoridade e a notoriedade que as definiram no mesmo momento em que o movimento black metal surge em Portugal, que assentava essencialmente em três bandas: DECAY, BACTHERION e MORBID GOD, que viriam mais tarde a mudar os seus nomes para DECAYED, FILII NIGRANTIUM INFERNALIUM e MOONSPELL, respectivamente.
Uma das pessoas que sempre esteve na linha da frente desse movimento é José Afonso, conhecido como J.A., guitarrista e fundador dos DECAYED. Mas para os amigos tinha uma alcunha especial, pela qual ainda hoje responde: “A minha alcunha era Zé Bathory porque era um grande fã de Bathory, como é óbvio. Ouvi-os pela primeira vez num programa de rádio de Almada, que era o Mensageiro do Massacre. Passou a intro e a «Total Destruction» do segundo álbum, «The Return Of Darkness And Evil».
Era meia-noite e tal e estava a ouvir aquilo sozinho em casa, com headphones, foi uma experiência do caraças e decidi que era aquele caminho que ia seguir.” Tal aconteceu na segunda metade da década de 80 e, nesse período, as fanzines e as rádios pirata foram um veículo de divulgação fundamental para o underground, alargando o leque de referências do público nacional muito para além do thrash metal mais em voga na altura.
“Foi em 1988 que a cena começou a rebentar. Havia mais pessoal na escola a ouvir aquilo, já se conseguiam encontrar os discos e gravávamos uns dos outros. O tape trading começou em força e fomos conhecendo gente de todo o lado, que encontrávamos nos concertos.”
Também Ares, baixista e fundador dos MOONSPELL, tem memórias muito vivas desse tempo. “Gravávamos os programas das rádios piratas e fomos acumulando conhecimento sobre bandas, ainda antes do tape trading.” E se nessa altura era difícil encontrar discos de metal em Portugal, bandas como BATHORY, SARCÓFAGO ou SODOM ainda mais.
“Depois começaram a aparecer lojas como a Bimotor ou a Palladium, e o Pedro Cardoso na feira da ladra, que era a romaria que fazíamos ao Sábado para encontrar as raridades. Nessa altura comprávamos também a revista Metal Forces, que tinha uma grande secção de anúncios de quase todo o mundo, e começámos com o tape trading, a enviar listas do que tínhamos e a escolher o que queríamos de outras listas. Trocávamos cassetes com pessoal do Brasil, e de toda a América do Sul e de muitos outros sítios.”
A outra banda que completava o triunvirato do black metal lusitano era FILII NIGRANTIUM INFERNALIUM. Liderada pelo carismático Belathauzer, que recorda com saudade estes tempos de inocência e ira. “Ninguém começou a ouvir metal com Venom, muito menos Bathory. Começámos com as bandas clássicas, como Judas Priest ou Metallica.
Na altura toda a gente gostava de speed e thrash metal, bandas como Slayer ou Kreator. Havia um grupo de headbangers que, gostando do metal clássico, gostávamos – e aqui falo na primeira pessoa do plural – de temáticas satânicas e blasfemas, ou anti-religiosas em geral. Lembro-me muito bem de gostar da letra da «Leper Messiah» dos Metallica. Não é uma letra satânica, mas é anti-religiosa e contra as religiões enquanto instituições.
Nesse terreno receptivo a um imaginário obscuro, muitos de nós estávamos receptivos a ouvir coisas do género. Acho que todos ouvimos Venom e Bathory mais ou menos ao mesmo tempo. A minha primeira vez foi na rádio, nuns programas oficiais e noutros piratas. Bandas como Moonspell, Filii e Decayed vêm de um processo de especialização do heavy metal a nível temático.
Não fazíamos grande distinção entre uns Mercyful Fate e uns Bathory, pelo menos até ao «Blood, Fire, Death». Aparecemos num momento mais ou menos simultâneo a bandas como Darkthrone, quando chegam ao black metal, ou quando os Mayhem começaram a ser verdadeiramente conhecidos na fase com o Dead. Eram bandas inspiradoras que estavam a recuperar a herança e o espírito do Quorthon.”
Sendo um projecto de um homem só, e não tendo músicos de sessão com que se apresentassem ao vivo desde 85, os BATHORY estavam assim limitados no alcance das suas acções de promoção que, para todo o universo rock (onde o metal se insere), têm nos concertos e tournées o seu principal veículo. Tentando contrariar esta desvantagem, Quorthon fazia viagens promocionais a diversos países com iniciativas que passavam por entrevistas aos meios locais, sessões d
e autógrafos, encontros com fãs e bandas locais, procurando tornar estas experiências em momentos marcantes para quem os vivenciava.
Em Maio de 1990, a propósito do lançamento do quinto álbum de BATHORY, «Hammerheart», Quorthon vem a Portugal numa iniciativa inédita na altura. A visita durou alguns dias, mas, no essencial, consistiu em dois encontros com fãs para sessão de autógrafos e conversas. Aconteceram no mesmo dia, de manhã em Almada e à tarde em Lisboa. Poderá não ser factual ou cronologicamente correcto, mas, simbolicamente, a visita de Quorthon foi o momento fundador do black metal em Portugal. Esse momento foi definidor tanto numa dimensão pessoal como social.
O impacto que teve em muitos dos presentes, o significado das suas palavras e o incentivo que representaram para aqueles jovens cheios de sonhos e objectivos. Fernando Ribeiro, dos MOONSPELL, não tem dúvidas sobre a importância desse momento. “Tirando o dia do nascimento do meu filho, e outros acontecimentos pessoais, considero esse como o dia mais feliz da minha vida, em termos do que me influencia como vocalista de Moonspell. Não foi ter discos de ouro ou estar no top, foi conhecer o Quorthon. Foi aí que se deu o click, foi o dia mais importante na história dos Moonspell”.
Existem filmagens desses encontros, disponíveis numa edição póstuma de BATHORY intitulada «In Memory Of Quorthon», que podem também ser vistas no player em baixo, e nelas encontramos vários miúdos que forjaram o nosso underground. Além dos já citados, vemos também Rick Thor, dos FILLI NIGRANTIUM INFERNALIUM e dos RAVENSIRE, o Jó dos THERIOMORPHIC, o V.J. dos DECAYED, o David Estorninho, que foi manager dos THORMENTHOR, e muitas outras figuras que ainda hoje fazem parte da cena.
Não é fácil apurar quem foi o responsável pela vinda de Quorthon a Portugal, mas quem lá esteve assegura que Pedro Cardoso, que vendia discos na Feira da Ladra, estaria envolvido nisso. A feira foi também um local chave na cena, um ponto de encontro semanal de pessoal de diferentes locais da Grande Lisboa, que ia procurar novidades na banca do Cardoso e aproveitava para trocar demos, fanzines e ideias.
Naquele dia 19 de Maio de 1990 também se travaram conhecimentos cujas ramificações consolidaram laços de camaradagem underground que foram fundamentais para no black metal nacional. “Conheci o pessoal de Moonspell quando o Quorthon veio a Portugal, nomeadamente o Fernando, o Duarte e o João Pedro”, recorda Belathauzer.
“Eu ainda não tinha Bactherion, apesar de ter uma série de ideias e projectos, sempre de one-man-band como o Quorthon: escuridão total, individualismo absoluto. Mas nesse dia conheci aquele que viria a ser o baixista. Foi também o João Pedro (Ares) que, entre outras coisas, decidiu mudar o nome de Bactherion para Filii Nigrantium Infernalium.” O relato de Belathauzer sobre esse período é muito vívido e exemplificativo das dinâmicas que naquela altura se formavam entre as bandas e os seus elementos.
O espírito de descoberta e a entreajuda, o fascínio pela obscuridade e a recusa em comprometer a sua visão eram usadas como medalhas. “Naquela tarde, no Centro Comercial Alvalade, quando acabou a sessão de autógrafos só ficaram lá os verdadeiros fãs, o núcleo duro. O pessoal da Brandoa queria entrevistar o Quorthon para uma fanzine, a Darkness Zine, que era muito boa e muito à frente de outras que se faziam em Portugal, e eu e o meu irmão tínhamos um daqueles pequenos gravadores de cassetes.
O Quorthon deu-nos uma entrevista, e isso aparece no DVD de Bathory. Ficámos amigos porque eu tinha o gravador e a cassete. Queria ouvir, mas depois combinaríamos um encontro em que lhes emprestaria a cassete para transcreverem a entrevista. Fomos falando e, no metro, tivemos uma excelente conversa que mostrou termos muitos pontos em comum. Eu queria fazer uma banda e eles também.”
A importância de BATHORY para o black metal é nuclear mas o percurso musical de Quorthon não se cingiu a esse estilo. Na verdade, quando chega a Portugal, já pouco lhe dizia o género e «Hammerheart» era um disco diferente. O álbum anterior, «Blood Fire Death», que é para muitos a sua obra-prima, deixa pistas para uma transição do black metal mais feroz para algo de mais épico e grandioso, sendo que em «Hammerheart» dá-se a transformação por inteiro.
Os rótulos valem o que valem, mas os BATHORY foram também pioneiros no que depois se chamou de viking metal, algo na altura bastante diferente de algumas fantochadas que hoje se associam a essa etiqueta, sendo um disco muito influenciado por Wagner, a quem Quorthon até foi buscar o nome do trabalho seguinte, «Twilight Of The Gods». Os BATHORY tiveram diferentes fases, e alguns discos menos conseguidos, mas a sua obra até 1990 é uma das traves-mestras da música extrema.
*Adaptado de «Lobos Que Foram Homens», Cap. 3 – “Stay Conquistadores!” [Saída de Emergência, 2018]