Tinha sido tão fácil. Tendo saído de cena logo a seguir a ter largado um dos álbuns mais celebrados da história do metal extremo – e tão “logo a seguir”, que ainda não era propriamente celebrado na altura em que a banda se extinguiu –, desde que decidiram regressar, os AT THE GATES podiam passar o resto da vida a reciclar o «Slaughter Of The Soul», quer figurativamente, fazendo discos parecidos só como desculpa para continuar a existir e fazer tours (tipo METALLICA do «Death Magnetic» para cá, e ora aí está um ossinho para se irem entretendo nos comentários), quer literalmente, demarcando-se de qualquer material novo e existindo só como força nostálgica (Olá, EMPEROR! Dois ossinhos!). Só que não. Apesar de não ser o seu álbum mais inspirado de sempre, o «At War With Reality» de regresso demonstrou logo que a evolução dos suecos não tinha parado em 1995. Aliás, sem desfazer todo o seu valor, os próprios membros da banda sempre disseram isso, mais ou menos admitindo que o «Slaughter Of The Soul» foi mais ou menos um exercício de estilo, um álbum deliberadamente simples, quase como reacção aos delírios progressivos dos álbuns labirínticos que tinham feito com o Alf Svensson no início da sua carreira.
Mantendo as inspirações literárias que o vocalista Tomas Lindberg sempre teve (vá, quem é que na altura também foi ler o «The Diceman» do George Cockroft aka Luke Rhinehart à pala das citações naquele booklet?), esse álbum pareceu indicar uns AT THE GATES mais introspectivos, mais escuros, e sim, mais progressivos, como sempre foram, aliás, tirando o incisivo período «Terminal Spirit Disease» / «Slaughter Of The Soul». Seguiu-se «To Drink From The Night Itself», que tem, especialmente agora com a perspectiva do tempo, toda a pinta de álbum de transição. Com alguns riffs praticamente reciclados e polidos dos 90s (mas carinhosamente) a coabitarem com aquela tendência de alargar os temas e os conceitos para criar algo sinistro, foi uma espécie de afirmação, de que sim, ainda somos capazes de fazer isto nesta altura, e mais, capazes de o fazer sem o Anders Björler, um dos gémeos compositores que, crucialmente, saiu da banda em 2017.
É este o contexto que nos traz a «The Nightmare Of Being», e é importante perder estas linhas todas a referi-lo, porque se torna assim muito mais fácil de perceber as motivações do quinteto sueco para que este álbum seja o que é. Pela primeira vez desde que regressaram – o que quer dizer, pela primeira vez desde que escreveram o «Slaughter Of The Soul», os AT THE GATES são hoje uma banda totalmente livre. Já provaram que ainda conseguem fazer discos com o «At War…», já provaram que sobrevivem na boa a uma mudança drástica de formação, e entretanto até provaram ainda que podem perfeitamente transcender a cena do death metal que os viu nascer e fascinar outros públicos da música pesada de forma igual, com uma marcante participação no Roadburn, onde Tomas foi o curador e onde a banda deu um concerto radicalmente diferente em 2019, com covers de KING CRIMSON, Philip Glass ou TROUBLE e com convidados como Anna von Hausswolff, Matt Pike ou Jo Quail. Nada prende os AT THE GATES a coisa alguma (os chatos da internet e as suas lamúrias de “o «Slaughter coiso» é que era melhor!” não contam), e «The Nightmare Of Being» é o resultado disso mesmo. De uma banda confortável com quem foi, com quem é, e com quem quer ser ainda.
Claro que tudo isto necessita de equilíbrio. Não esperem os AT THE GATES a fazer folk drone semi-acústico com aspiradores. Aliás, o trio de malhas que abre o disco é ATG quintessencial, ao ponto de ter mais um piscar de olho “daqueles”, embebido num dos riffs da «Spectre Of Extinction» de abertura (assim que o ouvirem vão saber qual é). E mesmo quando os elementos mais aventureiros começam a aparecer, é com classe que são introduzidos. A forma como o saxofone aparece em «Garden Of Cyrus» é como um penalty daqueles aveludados que batem na malha lateral com o guarda-redes já deitado para o outro lado da baliza, não é uma biqueirada em frente que entra depois de ressaltar no joelho do keeper, como uma banda menor poderia ter feito. É esse tema, o quarto, que dá o mote, como um mordomo anunciando convidados um a um numa voz calma, e eles aparecem todos, impecavelmente vestidos, desde os sete minutos épicos da sinistra e cinemática «The Fall Into Time» à estrutura desconcertante de «The Abstract Enthroned», com uma espécie de culminar na fumarenta «Cosmic Pessimism», que seria o som ambiente de um piano bar de death metal numa realidade alternativa, se conseguirem imaginar algo assim. Ao longo de tudo isto, há que realçar, a performance vocal de Tomas Lindberg acompanha a complexidade e sofisticação da música, conseguindo dar várias nuances ao seu urro característico e adaptando-o ao mood diferente de cada tema. Aos 48 anos, parece estar no topo da sua forma.
Irrepreensivelmente bem montado, dando segurança ao princípio para depois se atirar do avião, mas com o pára-quedas a abrir sempre na altura certa, «The Nightmare Of Being» é daqueles álbuns de cuja profundidade só nos apercebemos totalmente quando o tentamos descrever. Apesar das tendências progressivas e de uma aproximação labiríntica à composição de que o próprio Alf Svensson se orgulharia – a respeito do paralelo óbvio entre o «The Red In The Sky Is Ours» e o «With Fear I Kiss The Burning Darkness» com este novo álbum, Lindberg resumiu essa comparação hilariantemente: “a diferença é que agora sabemos o que estamos a fazer!” –, não há aqui masturbações técnicas desnecessárias nem palha só para encher minutos. Claramente um álbum de death metal superior e, no seu todo, com um impacto equiparável ao do mais bem colocado “go!”. Tomara à maior parte das bandas que celebram 30 anos de carreira manterem metade desta relevância e vontade de continuar a evoluir. [8.5]
Podes ler mais sobre o novo álbum dos AT THE GATES, incluindo uma entrevista exclusiva com o vocalista e estratega do colectivo, Tomas Lindberg, aqui.