Uma recente interpretação de um clássico trouxe à memória a evolução do mesmo. Neste exercício, nem interessa tanto escutar as versões, mas perceber como os mesmos músicos foram revisitando o tema.
Fala-se do gato das sete vidas, ou melhor, de Pink Floyd. Nave que teve vários timoneiros ao leme e por isso vagou em diferentes direcções. A pop de Syd Barrett abriu alas para um experimentalismo onde Richard Wright, Nick Mason e David Gilmour definiram muito do que se entende por prog e space rock. Brilhantes momentos foram criados, até que Roger Waters foi despontando e assumindo o leme. Aquele que foi woke antes da própria geração, tornou-se, naturalmente, num ditador e remeteu os outros músicos a meros instrumentistas. O colapso acontece por volta de 1985, quando «The Final Cut», disco tão pessoal como político, leva à desagregação da banda e ao afastamento de Waters, a caminho de uma carreira a solo. Agora a grande nave era liderada pelo mais democrático David Gilmour, enquanto Waters começa como o menino mimado que desdenha o passado, para hoje se agarrar a ele com unhas e dentes, money talks, ou “Grab that cash with both hands and make a stash”, nas palavras do próprio.
E qual é a mina de ouro? «The Wall», ou, neste caso, «Another Brick In The Wall». O disco surge em finais de 1979 e vendeu mais de 30 milhões de cópias em todo o mundo. Disco duplo, numa altura em que tal fazia sentido e não era apenas um argumento para a qualidade sonora. A narrativa, algures entre a ficção e o autobiográfico, descreve a evolução de Floyd, futuro músico de rock, numa Inglaterra opressiva e de fachada. O isolamento do personagem principal, leva a que construa um muro, The Wall, à sua volta. Audacioso? Muito. Num dado momento, a opressão do sistema escolar britânico, surge retratada naquele que viria a ser o single «Another Brick In The Wall». O vídeo é polémico, mas acaba a ser globalmente aceite pela conservadora BBC. Quem hoje não sorri ao ver as criancinhas a serem formatadas na escola? Afinal ainda se mantém actual.
Segue-se a digressão, megalómana, em que um muro é realmente construído em palco, ao longo da actuação do grupo. Com Alan Parker e um jovem Bob Geldof, surge o filme. «Pink Floyd – The Wall» aparece em 1982 e traz aos cinemas a mitologia que poucos tinham podido assistir ao vivo. Waters deixa a sua marca, entrando em conflito, posteriormente, com o realizador. Inicialmente seria ele o actor principal. Talvez aí tenha começado o episódio do ego ferido. No filme, faz-se a psicanálise do professor opressor da letra, com o personagem a ganhar mais dimensão, necessária para momentos posteriores.
Com a divisão da banda, cabe aos Pink Floyd executar o tema, algo que aconteceria nas digressões seguintes. O momento de 1994, em Earls Court, fica retratado no vídeo de «Pulse», disco ao vivo. Múltiplos músicos em palco, efeitos luminosos de grande porte, para a época e uma execução tão desinspirada quanto conforme à música. O prog rock no seu pior, diga-se. Porém, em 1990, com a queda do muro de Berlin, e a desagregação da cortina de ferro, o disco passa a ter uma interpretação mais política, à dimensão do activista em construção que era Roger Waters. Transmitido ao vivo para vários países, e posteriormente editado em disco e vídeo, o concerto reuniu um grande número de artistas populares à época. Localizado num terreno entre a praça de Potsdamer e as portas de Brandenburg, tem algo de épico só por si, pois uma frente de palco de 170 metros e uma altura de 25 metros, são sempre significativos. Cindy Lauper, vestida de colegial, a rebolar em palco, deu todo um outro significado ao tema.
É a partir daqui que Waters toma a interpretação do disco e de alguns temas em particular, para si. Em 2000, são os próprios Pink Floyd a lançar «Is There Anybody Out There? The Wall Live 1980–81». Em 2010, Roger Waters, com uma carreira a solo tremida, resolve voltar à estrada para executar todo o disco, no que seria conhecido como The Wall Live e que culminaria no vídeo ao vivo «Roger Waters: The Wall». Visualmente, o tema passa a ser um híbrido em que o muro clássico se mistura com o muro de Berlin, recheado de mensagens políticas.
Em 2016, o disco é adaptado a uma ópera e dois anos depois, é homenageado através do tributo «The Wall [Redux]». Diversos artistas recriam os temas, na lista estão Melvins, Pallbearer, ou Mark Lanegan. Em 2022, Roger Waters aparece no The Late Show with Stephen Colbert, a fazer uma versão com quase uma dezena de músicos em palco. Excessivo, desnecessário, ao mesmo tempo que uma interpretação em nada interessante. Se as músicas envelhecem bem, nem sempre o mesmo acontece com os músicos.
Entretanto são imensas as versões, muitas delas sinfónicas. Para aqui, fica a curiosidade de uns Acid Drinkers, em 1994, e de Sasquatch, estes no já referido «The Wall [Redux]». The Hollywood Vampires conseguiram o ideal, reunindo dois clássicos para uma só versão. Ao tema dos Floyd (ou de Roger Waters), juntaram «School’s Out» de Alice Cooper. E claro, a versão com mais raiva e sempre digna de menção, pertence aos Korn. Para o registo, ganha toda uma outra dimensão quando executada ao vivo.