Produzido para celebrar os vinte anos de carreira dos Amenra, o documentário «Amenra: A Flood Of Light» traz para primeiro plano a história de amizade e devoção à criação artística que caracteriza o colectivo belga, lançando alguma luz sobre a escuridão dos bastidores de uma banda que tem sido absolutamente inclassificável na perseguição e manifestação de um ideal estético. Realizado pelo fotógrafo Bobby Cochran, o documentário reúne imagens recolhidas em tour, captando o estado de espírito da banda à medida que vão atravessando país atrás de país, continente atrás de continente, cruzando esses momentos de maior descontração e intimidade, com imagens de arquivo recolhidas por habituais colaboradores da banda, o fotógrafo Stefaan Temmerman e o responsável pela iluminação e pela componente visual dos espectáculos ao vivo, Jens Vranckx.
Pela atenção que dedicam ao lado visual e performativo da sua presença em palco, Amenra estão longe de ser uma banda de retrato fácil. Difíceis de classificar em categorias arrumadinhas, não só pela evasão às limitações que muitas das vezes se colocam no horizonte de quem se envolve nas teias do ciclo interminável e desgastante da edição-de-mais-um-disco como porta de entrada para mais uma tour – método aliás particularmente eficaz para um choque frontal com a lógica da exploração mercantil do entretenimento, de onde têm saído “sobreviventes” em números cada vez mais reduzidos –, mas sobretudo pela abordagem às possibilidades criativas de uma banda. Ancorados no peso do sludge e na lama angustiante do doom que se arrasta à medida que avançamos pelas entranhas do tempo, mobilizam um conjunto de disciplinas artísticas, chamando até si a linguagem da escultura, da performance, ou do vídeo, integrando-as num corpo de trabalho que tem na ideia de ritual um dos pilares fundamentais.
O documentário de Cochran abre uma janela para estas questões com uma clareza desprovida de artifícios, colocando toda a atenção nos músicos e colaboradores mais próximos. Filmado num preto e branco de alto contraste, o documentário divide-se em quatro partes, quatro capítulos dessa “obra em progresso” chamada Amenra – «Origines», «Miliarium», «Spectrum Et Ingenium»,e, por fim, «Familia», são os diferentes prismas a partir dos quais o retrato se vai compondo, num gesto de aproximação ao coração da banda fundada em 1999 pelo vocalista Colin H. van Eeckhout, e pelo guitarrista Mathieu Vandekerckhove, dois “irmãos de armas” que têm sabido levantar o véu de uma arte tão libertadora quanto intoxicante.
Uma das impressões mais sublinhadas no documentário passa pela ligação entre a profunda amizade e cumplicidade que caracteriza o núcleo duro do colectivo (pelo meio há também tempo para uma breve passagem pela Church Of Ra, a denominação que reúne a banda e os colaboradores regulares vindos de outras áreas artísticas), e a consequente “desconstrução” daquilo que pode – ou não – ser um grupo de músicos e amigos que decide fazer música em conjunto. Bjorn Lebon, baterista, é aliás bastante esclarecedor quando afirma que Amenra sempre tentaram ser mais que uma banda. Este lado mais “transcendental”, chamemos-lhe assim, vem para primeiro plano quando Colin aborda uma das mirabolantes histórias que dão alguma cor ao caos imprevisível de uma tour. Depois do concerto cancelado por ter havido um corte de luz num festival onde era suposto tocarem, resolvem arranjar um gerador e improvisar uma actuação junto à floresta que circundava o parque de campismo – eis um concerto transformado ritual.
Longe de ser um mero panfleto de celebração de uma banda com duas décadas nas pernas, «Amenra: A Flood Of Light» é retrato justo de um grupo de artistas fascinados pelo lado de lá das aparências, músicos que fazem da distorção uma cartarse purificadora do ranço que teima em não largar essa coisa sempre esquiva mas que está sempre aqui à frente: espiritualidade.
Podes ler tudo sobre «De Doorn», o mais recente álbum dos AMENRA, aqui.