Apesar de «Plague God» ir ser, para a vasta maioria, o primeiro contacto que vão ter com este novo projecto cheio de gente conhecida, convém remontar a 2017, ano em que a editora belga Hypertension Records concluiu uma série limitada e luxuosa de álbuns colaborativos chamada «The Abyss Stares Back» com o quinto volume (os volumes anteriores tinham reunido os Amenra e os Vvovnds, os Hessian e os Primitive Man, os Drums Are For Parades e os Sardonis, e os Alkerdeel e os Nihill, respectivamente, para se ter noção do bom gosto envolvido), que em vez de ter uma jovem banda belga a “contracenar” com uma banda de maior nome, como era o conceito original da colecção, encerrou com chave de ouro com um só nome novo, um tal de Absent In Body, que em jeito cíclico voltava aos Amenra do primeiro voluma, via Colin H. Van Eeckhout e Mathieu Vandekerckhove, e juntava-lhes um representante dos que são, eventualmente a maior inspiração de todo este “alt metal” deste século, os Neurosis, através de Scott Kelly. O próprio Colin foi uma adição posterior, sendo a origem da colaboração o duo Kelly/Vandekerckhove, e a única faixa de quase vinte minutos que consumiu esse lançamento era um fluir muito abstracto quase em modo stream of consciousness, com alguns momentos de assomo sludgístico mais à Amenra do que propriamente à Neurosis, e com a roupagem principal a ser o noise e o dark ambient. Não era claro se seria coisa para dar mais frutos, e dada a actividade constante dos Amenra e o silêncio que se seguiu a este lançamento no que diz respeito ao nome Absent In Body dava a entender que ia ser coisa para figurar na lista dos completistas e dos mais curiosos em relação a estes nomes importantes.
Fast forward para 2022, e os Absent In Body reaparecem, e já todos crescidos. Na Relapse, a anunciar um álbum “a sério”, e munidos de mais um nome sonante na formação, nada menos que um tal de Iggor Cavalera, e se precisarem da lista de bandas onde este senhor pontificou, suspeito que estão a ler o site errado. Isto tudo só para contextualizar o facto de que esta banda – soa melhor do que “projecto”, e já justifica a alteração linguística – não é um caprichozito que apareceu agora do nada para vender uns discos à custa dos nomes. Não, já é coisa que tem história, desenvolvimento e evolução, e que como tal promete também ter continuidade, apesar dos afazeres de todos os seus integrantes. Bom, e já que falámos no senhor Cavalera, ele bem que se faz notar – depois dos dois minutos iniciais da «Rise From Ruins» de abertura, que são uma textura sonora tenebrosa à Absent In Body “antigo”, dispara-se um riff à Neurosis também do antigamente, com um Iggor à altura dos pergaminhos de um Jason Roeder neste estilo apocalíptico, a dizer “cheguei!” de forma contundente. É coisa que dura menos de um minuto, e entra-se depois numa parte melancólico-sinistra com o Colin a mandar uns guinchos em direcção ao vazio. É quase uma apresentação, como se estivéssemos numa rodinha, com cada um a levantar-se e a dizer quem é e o que faz. Olá, eu sou o Scott e este riffalhorro à Neurosis tem a minha cara. Olá, eu sou o Iggor, e este rolo compressor de batidas que vos ribombam na alma vem de mim. Olá, eu sou o Colin e esta gritaria que até faz o resto da música parar é o que eu faço nos Amenra também. Olá, eu sou o Mathieu e olha aqui este riff cheio de ruído à volta que vem a seguir aos gritos, este fui eu. É giro, e resulta no contexto deste tema de abertura, mas por outro lado faz-nos logo pensar nos Shrinebuilder, cujo (infelizmente) único álbum também teve demasiados momentos de “olha Melvins, e olha agora o Wino, e olha agora é Neurosis, e olha uma parte à Om” para ser um álbum 100% coeso (e quando o foi, como em «Pyramid Of The Moon», até faz doer a alma de saber que é projecto para nunca mais ser repetido).
Felizmente, as coisas unem-se muito mais já no segundo tema, «In Spirit In Spite», que aumenta a toada meio industrializada e até faz lembrar, a espaços, os Corrections House. Ainda tem períodos demasiado “redondos”, e demasiado evocativos das bandas de origem, o que não é necessariamente uma coisa má (não me parece que virá o dia em que “soas a Neurosis/Amenra/Sepultura!” será um insulto), mas com grande poder vem grande responsabilidade, como diz o outro, e para estas figuronas, a expectativa é que nos atirem com algo de superlativo, que transcenda mesmo os seus já transcendentes veículos habituais. E num trabalho sempre em crescendo, é em «Sarin» que esses desejos se começam a concretizar ainda mais. Sem nunca entrar por nenhum campo chocante ou totalmente inesperado, é um tema que parece uma colaboração entre os Neurosis e os Ministry, furioso e quase imediato (é um dos que não chega aos seis minutos, ajuda), e que prepara o chão para «The Acres/The Ache», que é o ponto alto de «Plague God», e que deve ser tomado como blueprint para o futuro. Recuperando os Absent In Body daquela primeira evocação, flutua entre beleza melancólica e intensidade febril, sem se ver as “costuras”, numa fluência perfeita de “doom industrial”, vá, ambiente e Ameneurosis-ismos brutais. Percebe-se que tenha sido escolhida para primeiro tema de avanço. A conclusão «The Half Rising Man» faz jus ao título, e passa metade do seu tempo num crescendo lento e lúgubre, antecipando sempre uma explosão súbita que não chega a acontecer – ali por volta dos sete minutos damos por nós e já estamos metidos no inferno, sem termos sequer percebido como é que lá chegámos. Um corte súbito logo a seguir à marca dos oito minutos acaba com o tema, e com o álbum, como se o cadafalso se tivesse aberto por baixo dos nossos pés.
Resumo final – um projecto que, já sendo brilhante, ainda está em desenvolvimento e que tem nítido potencial para vir a ser ainda mais especial. Esperamos que todas as grandes figuras envolvidas tenham tempo e vontade para o fazer crescer às alturas que promete atingir nos melhores momentos de «Plague God». E para irem dando um concertozinho especial aqui e ali, já agora. [8.5]