Cinco décadas de carreira e já na segunda digressão de despedida, tornava-se cada vez mais relevante discutir o que seria o legado de OZZY OSBOURNE. Como vocalista e frontman dos inimitáveis BLACK SABBATH, líder da sua banda a solo e figura de proa nos círculos do heavy metal, o músico nascido John Michael Osbourne a 3 de Dezembro de 1948 em Aston, Inglaterra, é sem dúvida uma figura incontornável. E sim, é senhor de um percurso cheio de altos e baixos, triunfos e fracassos, quase todos dignos de hipérbole, a que poucos são aqueles que conseguem ficar indiferentes. O trabalho que o duplo-O desempenhou com a banda de Birmingham, cujos primeiros seis álbuns desempenharam um papel crucial na criação do evangelho a partir do qual o heavy metal foi moldado, é intocável. Assim como parte da sua carreira “a solo”, que – muito graças à sua associação a guitar heroes do calibre de Randy Rhoads, Jake E. Lee e Zakk Wylde – acabou por revelar-se tão, se não mais, influente. O problema é que, a dada altura, o jogo mudou, quiçá à força dos dólares ou da relevância.
Quando, em 2002, a MTV transmitiu o primeiro episódio do reality show ‘The Osbournes’, o mais certo é que ninguém – nem a Sharon – pudesse prever o que esse tipo de exposição podia fazer à reputação do músico. E, de rompante, o Prince of Darkness, movido a doses cavalares de drogas e álcool, capaz de arrancar a cabeça a uma pomba com os dentes frente aos executivos de uma editora, transformou-se num alvo fácil de memes e piadas tristes. Não vai ser fácil esquecer aquela cena em que o músico fica perdido, a tremer como varas verdes e a chamar em desespero pela mulher, no jardim da sua mansão. É, no entanto, simples desculpar os negócios questionáveis graças a uma ética de trabalho a que ninguém se pode sequer atrever a apontar o dedo e, quando “aterrou” pela primeira vez em Portugal, o músico estava outra vez na mó de cima e a protagonizar uma segunda digressão de despedida, apelidada No More Tours II, que, antes de chegar à Europa, moveu multidões do outro lado do Atlântico. Será que, em 2018, era outra vez cool gostar do Ozzy?
A resposta a essa questão vai ter de ficar para depois, uma vez que, antes de vermos Ozzy em palco, ainda havia que sentir o pulso aos Judas Priest do Séc. XXI. Às 20:00, os convidados subiram pontualmente ao palco e atacaram de imediato uma sala já muito bem composta com «Firepower», tema de abertura e de título do mais recente registo da banda de Birmingham. É sabido que, misturando tudo o que de bom fizeram ao longo da sua longa carreira, o álbum marcou um regresso à forma para Rob Halford e companhia. Em palco, reforçaram essa ideia, com uma entrega de heavy metal musculado que, nos clássicos como «You Got Another Thing Coming» ou «Turbo Lover», nunca descarta uma atitude que continua a estar enraizada nos 70s e 80s. Apesar de ter “perdido” os seus dois icónicos guitarristas nos últimos anos – K.K. Downing afastou-se em 2011 e, no início do ano, Glenn Tipton viu-se forçado a abdicar dos palcos devido à progressão da Doença de Parkinson de que padece –, o grupo continuava ainda a conservar a sua identidade intocada.
Passavam poucos minutos das 21:50, os JUDAS PRIEST tinham saído de cena há três quartos de hora e, tendo em conta a antecipação quase palpável no ar, não era preciso sequer ouvi-lo cantar para perceber que, provavelmente, nunca deixou de ser cool ver o Ozzy ao vivo e a cores – num palco, e não num ecrã de televisão. Só isso e aquele aniversário da Rainha de Inglaterra, que nos impediu de vê-lo em 2002, podem justificar o estrondo que o pequeno filme com imagens vintage que, com o «O’ Fortuna» de Carl Orff a providenciar a epicidade que se pretendia do momento, provocou. Quando o músico entrou em palco, decorado com uma enorme cruz e um ecrã, se dirigiu ao microfone e deu as boas noites já tinha o público na mão e, depois, dois dedos de conversa bastaram para acender o rastilho… “I want you to go crazy tonight”, disse-nos ele como se aquela gente estivesse ali para outra coisa. “The crazier you go… The crazier I go!”, explicou. “Are you ready?!?!”. A plateia respondeu-lhe em uníssono, mas o Ozzy não estava satisfeito e o “LOUDER!!!” que se seguiu, como se de um apelo primordial se tratasse, seguido pelos primeiros acordes da «Bark At The Moon», deram o tiro de partida certeiro para uma actuação que encheu as medidas dos fãs e dos curiosos, calou más línguas e, na essência, serviu entretenimento de qualidade superior.
Pese a ocasional nota ao lado (o que acaba por ser pouco relevante se tivermos em conta que nunca foi o cantor mais afinado ou técnico do mundo), Ozzy fez, como sempre, valer o sentimento e o divertimento face a tudo o resto, mas também fez por mostrar que a voz está muito melhor do que alguns previam. A sequência de abertura, que ficou completa com «Mr. Crowley», «I Don’t Know» e «Fairies Wear Boots», a primeira (e muito aplaudida) recordação do legado BLACK SABBATH, serviram para perceber isso. Na No More Tours II era por altura do quarto tema, «Suicide Solution», e com o avançar da setlist, que o foco da atenção deixava de estar só no frontman. «No More Tears» e «Road To Nowhere», em versões bem sólidas, serviram para mostrar o talento e versatilidade dos músicos que acompanham Ozzy. Rob “Blasko” Nicholson provou ser o baixista sólido que já se sabia da associação a Rob Zombie e Adam Wakeman – nos teclados e ocasional segunda guitarra – parecia ter herdado parte do talento do pai (Rick Wakeman, dos YES), mas as verdadeiras “estrelas da companhia” foram Tommy Clufetos e Zakk Wylde.
Por muito elaborado que seja um espetáculo de luzes, como foi o caso naquela noite, algo que nunca vai deixar de suscitar admiração é ver uma estrela a iluminar os seus petizes, ainda mais quando isso dá liberdade a um virtuoso como Wylde para descer para uma das pontas do fosso da segurança, destilar lá o solo da «War Pigs» e, primeiro com a guitarra atrás das costas, depois a tocar com os dentes, percorrer a extensão da boca de palco sem falhar uma nota, protagonizando um daqueles momentos para mais tarde recordar. Dando também tempo ao vocalista para recuperar o fôlego, os instrumentistas atacaram de seguida um medley com partes de «Miracle Man», «Crazy Babies», «Desire» e «Perry Mason», sendo que o endiabrado Tommy Clufetos acabaria ainda por rematar a dose de auto-indulgência própria de um grande concerto de rock com um solo estrondoso. Com Ozzy revigorado, daí ao final do espetáculo as coisas aconteceram num ápice, sucedendo-se «I Don’t Want To Change the World» e «Shot In the Dark», que culminariam de forma algo vertiginosa em «Crazy Train», numa emotiva «Mama, I’m Coming Home» e numa versão muito rápida (quiçá demasiado) da «Paranoid», outra recordação, esta de 1970, para os BLACK SABBATH.
Às 23:30, soaram os últimos acordes de «Changes», em versão gravada, através do P.A. e, depois de o termos visto a suar literalmente as estopinhas no palco da Altice Arena durante pouco mais de 90 minutos, é impossível dizer que não vimos um grande espetáculo. Mesmo que ainda haja por aí quem insista em vê-lo como o tio excêntrico, com um parafuso a menos, que gosta de ser o bobo da festa e de dizer uns disparates sem filtro, não há como negar que, apesar dos altos e baixos, das decisões questionáveis e até da idade, este homem continua a ser o gigante que mais ninguém é hoje em dia no universo da música pesada. Apoiado num alinhamento escorreito, composto pelos maiores êxitos do seu percurso a solo, algumas escolhas menos óbvias e três canções do repertório BLACK SABBATH, naquele que foi um proverbial “Olá! Adeus!” aos fãs portugueses após o cancelamento da participação naquele longínquo Ozzfest, Ozzy não só provou a sua relevância pessoal em vésperas da reforma como a do rock como género musical válido – e, mais importante, intemporal – numa altura em que se voltou a vaticinar a sua morte.